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Alguns contos.

Uma tarde com bolinhos de chuva

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

A chuva, àquela tarde, foi mais do que a água abundante e cristalina, foi especialmente uma saudade carinhosa para o meu coração. Até o momento, era um dia comum com os afazeres. Depois do almoço, o tempo mudou e a chuva logo começou. Terminei o que precisava em casa ‒ aquele dia estava de folga do trabalho ‒ e fui para a varanda lateral observar a aguinha caindo do céu e animando as plantas; até alguns passarinhos brincavam de voar na chuva.

Sentei-me na cadeira branca, na varanda, e fiquei olhando o comportamento da natureza, sempre belo e sábio. Ao lado, há uma mesinha redonda e também branca na qual deixo o romance que estou lendo e normalmente uma xícara com chá de camomila. Agora só estava o livro. Fiquei mais um pouco olhando tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo. A chuva tornou-se mais calma, e continuava.

De repente, parece que senti o cheiro de bolinho de chuva. Tentei esquecer. Quem estaria fritando esses bolinhos? Ninguém. Mas o cheiro persistiu e comecei a ficar com muita vontade, vontade de criança que não esquece. Não me restou outra saída, fui fazer. Minha avó materna havia me ensinado. E como amava os seus bolinhos. Lembro-me de quando eu era criança e passava parte das férias na casa de minha avó que fazia muitos bolinhos de chuva, guardava numa lata grande e tínhamos aquela delícia por muitos dias. Era para o café da manhã e o da tarde, mas como “vó é vó” eu podia comer quantos quisesse também durante o dia.

Peguei os poucos ingredientes e a tigela e coloquei-os na pia. Comecei a arte da culinária do delicioso bolinho. E lembrei-me de que minha avó falava: “A massa deve ficar mais consistente do que a de bolo”. E foi assim que ficou. Esquentei bem o óleo na panela e pegava a massa com colher e a colocava no óleo quente. Logo terminei. Esquentei água para o chá.

Sentei-me. Na mesa da cozinha estavam o prato com os bolinhos e a xícara de chá de camomila. E, de fato, os bolinhos estavam deliciosos. Enquanto fazia e quando comia, meu pensamento reavivou inúmeras lembranças de minha tão querida avó. Uma saudade tranquila e cheia de ternura tomou meu coração. E falei em voz alta: “Ah, vó, que saudade!”.

Peguei mais um bolinho e neste momento senti um carinho no meu dedo mindinho. A surpresa foi grande com um frio no estômago. Meus olhos se encheram. Lembrei-me tão ternamente destas palavras: “Minha querida, seja feliz!”. Eram as palavras que minha avó sempre me dizia e acarinhava com leveza o dedo mindinho de minha mão direita. Senti com calma e gratidão esse momento.

Depois de um tempinho, secando o rosto, pensei: “Verdade, o amor que existe não se perde, mas fica no sentimento sem diferença de dimensão”.

(Cínthia Cortegoso)

Uma estrela sob o céu

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

O chão era de terra não só ao redor do casebre, mas em quase toda a cidade, só mesmo bem no centro da cidade havia calçamento, e também era sujo de terra.

E no casebre número dezessete morava Shaira, uma menina africana de doze anos. Mais cinco irmãos, uns maiores e outros menores que ela, sua mãe e a avó materna também dividiam o local suspenso por frágeis estacas de madeira velha. Esse era o cenário de quase toda a cidade, com exceção do centro que era calçado e possuía construções de comércio e alguns estabelecimentos necessários para o funcionamento de uma pequena área de civilização.

A mãe trabalhava numa fabriqueta de costura. Cumpria quase doze horas diárias de trabalho para manter a comida para a família, uma mistura de farinha com água mais alguns legumes era prato rotineiro. A avó fazia uns bolinhos típicos da região a fim de conseguir um pouco de dinheiro para algum remédio ou comprar algo de quase tudo que lhes faltava.

Shaira era diferente dos outros irmãos e das crianças que por ali viviam. Era mais quieta e muito observadora. E adorava olhar para o céu quando a noite começava a chegar. Ficava encostada, se a deixasse, por horas, no batente da única porta do casebre e olhava tanto para aquele profundo céu com estrelas. Não se encantava muito pelas brincadeiras comuns do lugar. Mas ao mesmo tempo era cheia de ternura e muito carinhosa com sua família.

A avó muito a observava. Era uma senhora simples que exageradamente já havia trabalhado em sua vida. Desde criança era entregadora de água, ou seja, ela ia até a fonte, um lugar bem distante, enchia latas grandes de água e trazia para as pessoas que tinham alguma moeda para lhe dar. Com esse trabalho criou a filha e ajudou a criar os netos, mas ultimamente sentia, com dor e desconforto, o excesso cometido ao corpo ao longo dos anos. E os bolinhos agora podiam ajudar a renda. E a avó perguntava para Shaira:

‒ Minha neta, o que tanto olha para o céu?

‒ Eu gosto muito do céu, vó ‒ simplesmente a menina respondia e continuava com o olhar compenetrado.

A avó a olhava um pouquinho mais e voltava para os afazeres.

Durante o dia, Shaira ia à escola, ajudava em casa. A magia começava com o início da noite e continuava noite adentro, mas às dez horas já estava na cama junto com todos os irmãos.

A menina gostava muito de cantarolar uma música folclórica da região. Eram assim os versos que ela sempre repedia: “E um dia, quando for forte e grande, terei condições de salvar meu povo e subir para o céu”.

Naquele dia, última sexta-feira do mês, Shaira voltou da escola em companhia de seus irmãos e alguns coleguinhas, como sempre fazia. Quando ela e os irmãos chegaram, a comida estava pronta, a mistura de farinha com água mais alguns legumes; a avó é quem preparava, pois a mãe trabalhava na fabriqueta quase doze horas por dia.

Depois de lavarem as mãos, as crianças se sentavam num banco de madeira que havia no casebre. A avó lhes servia um prato de comida para cada um. Sem falatório, nem boca aberta, as crianças e a avó comiam com calma e muita educação. Esse comportamento era natural naquela família. Quando muito, durante a refeição, uma ou outra criança compartilhava algum acontecimento.

Alimentados, então era hora de cada um fazer o que deveria. E Shaira sempre lavava a louça do almoço. Assim também fez naquela sexta-feira. E depois da tarefa feita, ela pediu à avó se poderia ir à casa de uma amiga para as duas fazerem o trabalho da escola.

‒ Sim, minha neta. Mas tome cuidado ‒ falou a avó.

A menina deu um beijo no rosto da querida senhora e nos dos irmãos que ali estavam, pois dois deles já haviam saído para brincar. Pegou o material e foi para a casa da amiga.

O trabalho escolar consistia em criar uma poesia e declamá-la no dia da grande apresentação da escola. Alguns países fizeram uma aliança cultural, cujos vencedores das escolas participantes viajariam para um país europeu e apresentariam as poesias. Então, Shaira chegou à casa da amiga Malika, que vivia numa situação financeira um pouquinho melhor. As duas eram muito amigas e decidiram se reunir para se ajudarem com o propósito da criação da poesia.

Sentadas à mesa, com lápis na mão e papel à frente. Só faltava mesmo a inspiração.

As duas começaram a rir. A graça de criança.

‒ Mas, Malika, precisamos ter ideia… precisamos saber sobre o que vamos escrever ‒ Shaira falou.

‒ É mesmo. Precisamos escolher o que queremos escrever ‒ pensou um pouco. ‒ Será que podemos colocar sobre qualquer coisa? ‒ a amiga perguntou.

‒ A professora falou que sim, mas que precisa ter sentimento, porque poesia não existe sem sentimento ‒ Shaira relembrou o que a professora havia explicado.

E aquela tarde foi a primeira das cinco que as duas se encontraram para tentar escrever a poesia. Malika finalmente escreveu sobre o amor que sentia por seu cão vira-latas de olhos cor de mel. Ela o amava, então, descreveu esse sentimento com simples e verdadeiras palavras.

No entanto, Shaira, na véspera do dia da entrega da poesia, ainda não havia terminado e muito menos poderia declamar algo que ainda não existia. Ela se despediu de Malika que lhe falou:

‒ Shaira, podemos dizer que escrevemos juntas a poesia e pedimos para declamar. O que acha?

Shaira a escutou com carinho e lhe falou:

‒ Malika, a professora disse que cada um precisa escrever a sua própria poesia. Desse jeito, nós duas ficaremos sem nota… e você já escreveu a sua… que ficou linda ‒  Shaira  falou com a delicadeza que lhe era tão própria.

‒ Gostaria que você já estivesse escrito uma bela poesia ‒ Malika falou.

‒ Sim… ‒ Shaira falou meio desanimadinha e logo foi embora.

Ela estava esperançosa que durante o caminho de volta tivesse uma ideia que a ajudasse com a poesia, mas ela chegou ao casebre e nenhuma ideia havia surgido.

E mais uma vez, Shaira chegou e ajudou a avó. A menina estava preocupada com o seu dever poético.

Terminada a ajuda, a menina foi admirar as estrelas. Seus olhos brilhavam com o encanto do céu. Mais do que nunca, ficou estática a buscar o entusiasmo criador. Precisava escrever uma poesia; a inspiração começou a surgir.

A menina, sem perder tempo, correu para o papel e o lápis. As palavras começaram a formar os primeiros versos, melodia, cadência, estrofação, tudo sem conhecimento de estrutura poética, mas com inteiramente o caminho do coração. Shaira começou a organizar o que já existia em seu sentimento, simplicidade foi dando forma. E não parou de escrever até colocar o ponto final no último verso.

Soltou o lápis sobre o papel. Os irmãos, aquela noite, estavam mais calminhos.

Pegou o papel e leu a poesia. Após a leitura seus olhinhos estavam marejados. Leu a sua própria emoção. Mas logo se lembrou de que não bastaria escrever, era necessário memorizar a poesia para, no dia seguinte, declamá-la e garantir, pelo menos, alguma pontuação para a nota final.

Sua família já estava dormindo. A avó e a mãe não se importavam em deixar uma luz acesa, pois sabiam do trabalho escolar. E, com determinação, a menina conseguiu, por mais uma hora, ler e tentar gravar a poesia; em seguida o sono e cansaço foram mais determinados que a jovenzinha.

Novamente o sol nasceu e o dia da apresentação chegou. A ordem para declamar seguia o livro de chamada. Shaira seria uma das últimas e, sentadinha, aguardava a sua vez na humilde sala de aula.

Alguns alunos eram mais aplaudidos que outros; finalmente chegou a vez da menina que se levantou e foi para a frente da sala. Levou a poesia escrita no papel que a criara. Ela sabia que não poderia ler, mas foi mais por segurança.

Um pouco tímida, começou. Não houve um barulhinho sequer durante a apresentação. Quando terminou, os aplausos foram muitos.

‒ Que poesia linda, Shaira – a professora falou.

‒ Obrigada, professora – a menina agradeceu.

‒ Adorei, Shaira – Malika abraçou a amiga. ‒ Eu estava triste por você, ainda ontem, não ter conseguido… Que bom… você conseguiu! ‒ Malika falou muito feliz.

‒ Sim, Malika, também estou muito feliz. Escrevi o que eu estava sentindo ‒ Shaira falou.

E por ser tão simples e sensível, a poesia de Shaira foi escolhida, entre as dos alunos da escola, para a declamação em um país europeu.

A menina, na companhia dos colegas e irmãos, voltou saltitando de alegria para casa. Também levou um pedido solicitando, no dia seguinte, a presença do responsável para as determinadas explicações e a autorização para Shaira poder participar do evento cultural em um país europeu que custearia todos os gastos. Seria também uma preciosa oportunidade para a menina conhecer novos lugares e pessoas, oportunidade até de iniciar uma nova vida.

No dia seguinte, a avó, com a procuração, chegou à escola na companhia da menina; a mãe não pôde comparecer, pois trabalhava quase doze horas diárias.

O professor, que também acompanharia Shaira, explicou à avó como seria a viagem, quanto tempo ficariam e o mais importante, além de todo gasto ser pago por um país europeu, a aluna receberia uma quantia em dinheiro pela participação. E a avó foi embora; Shaira ficou na escola. Mais tarde, o professor daria entrada à documentação necessária.

Como a cada dia tanto se resolve, após alguns amanheceres, chegou a manhã da viagem. A pequenina, com sua avó e irmão, chegou à escola um pouco adiantada do horário marcado.

A despedida foi emocionante.

Shaira nunca havia ficado distante de sua família… de sua avó querida. Mas eram apenas alguns dias e por um motivo tão feliz: a sensível poesia.

E lá no alto, o avião já recebia de mais perto os dourados raios solares. A menina estava sentadinha ao lado do atencioso professor e de uma professora acompanhante. Mais algumas horas e o avião tocou o solo em outro país, continente, com distinta cultura e valores.

Passada a noite, Shaira e os professores, após um delicioso café da manhã no hotel, foram levados ao maior colégio da cidade, onde aconteceria a apresentação com vinte alunos vencedores de diversos países.

O teatro do colégio estava lotado.

Vários alunos já haviam recitado quando Shaira foi apresentada.

‒ Recebam, com uma salva de palmas, a querida africana Shaira – foi o anúncio final do apresentador.

Shaira entrou no palco.

O público se aquietou.

A menina de doze anos estava diante de uma enorme plateia. Então, ela respirou fundo e começou a declamar sua poesia. Ela, assim, delicadamente começou:

“Gostaria tanto de pegar

uma estrela do céu.

Mas pensei… se eu pegá-la,

uma estrelinha deixará

de brilhar, pois em minha

mão não é o seu lugar.

Gostaria de ser uma estrela…

uma estrela azul,

poderia ver meu povo do alto;

mas se fosse assim,

estaria longe e não

poderia ajudá-lo.

Gostaria de ser

uma colorida borboleta

para voar por todo

os espaços e ver do

que meu povo mais precisa,

mas eu seria muito frágil

para ampará-lo.

Poderia, então, ser

uma linda flor

perfumada para

ajudar as pessoas a

se sentirem melhor.

Mas uma flor tem

vida mais curta

e não poderia ajudar

muitas pessoas.

Então, posso continuar mesmo a ser…

Shaira, uma menina africana

de olhos verdes,

pois crescerei e o

brilho das estrelas

iluminará meu caminho;

como a borboleta,

terei sabedoria para

ir por todos os lados

e serei doce como a

flor para conversar com meu querido povo

e entendê-lo.

Somos o que devemos ser,

mas podemos nos melhorar sempre”.

O público começou a se levantar antes mesmo de a menina terminar sua declamação. Algumas pessoas se encaminharam para os corredores. E quando a menina, magrinha e muito simples terminou, ficou um pouco envergonhada no palco, sozinha.

Em segundos, os aplausos aumentaram. O público do corredor queria estar mais próximo da menina africana de olhos verdes e não ir embora por estar desinteressado. O som das almas e assovios aumentavam a cada segundo.

Aqueles olhos verdes estavam brilhantes da lágrima emocionada. Abraços e cumprimentos, Shaira perdeu a conta de tantos que recebeu. E mesmo com a apresentação posterior dos outros alunos, foi Shaira quem levou o troféu por sua linda poesia. Estava muito feliz, pois além de tantos bons momentos durante a viagem, ela receberia um prêmio em dinheiro e poderia comprar coisas muito necessárias para sua família, inclusive, o primeiro bolo de aniversário para sua avó que em três dias completaria setenta e dois anos.

Shaira, na verdade, já era uma estrela, uma flor e uma borboleta, pois irradiava luz, era profundamente sensível e também de uma grande sabedoria, a de amar e tanto querer ajudar o seu povo.

E lá do céu, a menina enxergava o pequenino universo onde morava. Estava cheia de planos. O avião aterrissou.

Os olhos verdes da menina se encontraram com sua família e seu povo. As estrelas do céu brilhavam forte depois de um dia de sol.

(Cínthia Cortegoso)

Sob a luz do céu segue o caminho da vida

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

Quando criança, Cecília era uma menina radiante, espuletinha, dificilmente chorava, só mesmo quando alguma coisa a machucava como o dia em que tentou pular a cerca de madeira entre uma casa e outra e acabou cortando a perna, o que resultou em alguns pontos. Ou ainda, quando sua melhor amiga mudou-se para outra cidade e, por isso, como Cecília chorou.

Ela não tinha irmãos e seus pais eram bem mais velhos do que os pais dos seus amigos e colegas de escola. Mas a menina ‒ que hoje já era jovenzinha ‒ amava seus pais do jeito que eram. E amava ouvir as histórias de antigamente que eles contavam.

Numa noite clara de primavera, cujo céu parecia um jardim de estrelas, os pais e a filha estavam na varanda, sentados, apreciando o belo céu no ritmo das histórias de antigamente. Numa dessas, o nome Lucila fora mencionado e os pais, nesta hora, olharam-se surpresos. Tentaram continuar, mas Cecília percebeu a surpresa e lhes perguntou:

‒ Quem é Lucila?

Os dois, de surpresos, passaram a assustados. Não deram resposta.

‒ Quem é Lucila? ‒ a filha insistiu.

‒ Meu bem… ‒ a mãe tentou começar uma explicação. ‒ Lucila era uma jovem que morava perto de onde morávamos na cidade do interior.

O pai não falou nada.

‒ E o que aconteceu com ela? ‒ a filha perguntou.

‒ Ah, naquela época só me lembro de que ela era uma adolescente e sua família passava muita necessidade.

Algo parecia faltar para a explicação. Então, o pai começou a contar outra história que recordara, algum acontecimento engraçado da época em que era menino. Mesmo assim, uma tensão pairou sobre a varanda. Cecília ficou mais um pouco e foi para seu quarto, adorava ler à noite.

Os pais se entreolharam com sentimento de preocupação. Ficaram os dois mais um pouco olhando o céu, mas com o pensamento perdido no tempo. Com passos calmos, Cecília voltou à varanda e sentou-se onde antes estava. Os dois a observaram e lhe sorriram com os olhos ansiosos.

‒ Oi, filha ‒ a mãe falou querendo uma resposta.

‒ Oi, mãe ‒ queria saber alguma coisa.

O pai observou o andamento sem falar nada. Algo incomodava os três; a filha interessou-se pelo nome.

A luz da lua parecia clarear ainda mais os olhos daquela família. Cecília aguardava mais algum comentário sobre Lucila. Os pais vasculhavam com rapidez a mente para logo iniciarem outro assunto, mas outros assuntos não eram interessantes o suficiente para aquele momento.

‒ Quem era a mãe de Lucila? ‒ a filha perguntou.

Os pais tentaram ganhar tempo para uma resposta.

‒ A mãe… de Lucila era a dona Anna.

O homem se surpreendeu com a resposta que não deixou de ser verdadeira.

‒ Anna? E o pai?

‒ O pai? ‒ a mãe ficou surpresa.

‒ Sim.

‒ O pai… se não me engano, era Constantine.

‒ Constantine e Anna ‒ Cecília repetiu.

E em meio às surpresas da noite, as horas passaram rápido, quase meia-noite.

‒ Preciso dormir ‒ o pai falou olhando o relógio de bolso.

Ele se levantou e foi para dentro.

Apenas as duas ficaram.

Cecília olhou para a mãe e sorriu. A mãe foi recíproca.

‒ Mãe, amo você.

A filha aproximou a cadeira e esticou o braço para pegar a mão já enrugada da mãe. As duas ficaram de mãos enlaçadas olhando a lua.

Cecília acariciou a mão materna. E as duas continuaram olhando para a imensidão do céu.

‒ Um dia posso conhecer quem me gerou e amá-la também, mas meus grandes amores hoje são você e papai.

As mãos ficaram enlaçadas e os olhos, marejados olhando o horizonte, brilhavam com a luz da lua e o brilho das estrelas.

(Cínthia Cortegoso)

Os moinhos de Anemoon

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

Quanto mais vento, mais as hélices dos moinhos se movimentavam, elas se impulsionavam querendo alcançar o horizonte assim como Anemoon queria partir para os lugares criados por sua imaginação.

Ele era um menino habitante de uma pequena e calma cidade da Holanda, morava com seus avós; seus pais, por algum motivo, foram para outro país a fim de encontrarem uma vida mais tranquila e próspera, mas nunca voltaram para a pequena cidade, nem para visitar o filho que há pouco completara doze anos. E Anemoon sentia a falta dos pais, no entanto, não compartilhava essa dor com os avós que ele tanto amava e os avós o amavam mais e mais, costumavam dizer que os amavam até o infinito do vento dos moinhos. Anemoon sorria.

O avô tinha um pedaço de terra, equivalente a uma chácara simples, onde plantava, em pouca quantidade, muitos alimentos para a família de três pessoas consumir. A avó, ótima cozinheira, fazia comidas muito saborosas. Não eram comidas sofisticadas, mas muito nutritivas e deliciosas; Anemoon sempre elogiava sua avó-cozinheira predileta. Ainda havia um gato branco de nome Zank, já era da família, pois presenciara boa parte da história dessas pessoas. Ele era muito observador e parecia compreender o que ocorria naquele lar. Era já um velho gato.

Anemoon perdia a hora de tanto contemplar os moinhos próximos de sua casa. Eram moinhos antigos e estavam lá só como preciosidades, pois outras máquinas mais modernas já os haviam substituído para a captação de energia. Entretanto, existiam, estavam conservados; suas hélices giravam e, para o menino, eles eram importantes demais: davam realidade à sua imaginação.

E numa tarde de céu azul anil claro, o menino estava sentado num banquinho sob a sombra de uma árvore de pequeno tamanho olhando para seus inspiradores moinhos, quando algumas pessoas com roupas diferentes começaram a sair de dentro deles e a caminhar para perto do menino que não acreditava no que via, coçou os olhos para tentar melhorar a visão, mas era uma imagem verdadeira e as pessoas mais se aproximavam dele.

Os moinhos passaram a rodar mais rápido, pois o vento também estava mais forte. Anemoon não piscava e seus olhos diziam não acreditar. E quando se deu conta, as pessoas estavam bem à sua frente. Sorriram para ele com ternura. O pequeno não teve condições para fugir, pois suas pernas estavam trêmulas e não poderiam sustentar o corpo de menino. E eles abaixaram e sorriram para Anemoon. Havia homens e mulheres; todos estavam vestidos com roupas muito diferentes das que ele conhecia.

Os olhinhos estavam prontos para piscar. “Quem sabe com algumas piscadas, a mágica pudesse se desfazer e tudo voltaria ao normal”, o menino pensou. Mas ele piscou muitas vezes e coçou forte os olhos, mas aquelas pessoas com aparência de bondade continuavam ali e após o pensamento do menino, eles sorriram mais e Anemoon percebeu. Na verdade, sorriram porque…

‒ Vocês sabem o meu pensamento? ‒ Anemoon perguntou espantado.

‒ Sim, podemos saber o seu pensamento – um dos homens respondeu.

‒ E agora? Vocês saberão tudo o que penso! ‒ o menino concluiu insatisfeito. ‒ O pensamento é de cada um! ‒ falou um pouquinho bravo.

‒ Calma, Anemoon! ‒ uma das mulheres pediu com muita ternura. ‒ Você já sabe o meu nome? ‒ tornou a perguntar.

‒ Sim… e também sabemos muito sobre você, menino dos moinhos – a mulher completou.

Decididamente, Anemoon não falou mais nenhuma palavra… para quê? Eles podiam ler o pensamento do menino.

Entre homens e mulheres, contavam cinco: três delas e dois deles. “Eram muito diferentes, mas de um jeito bonito e não assustador”, pensou o menino. Suas roupas eram de um cinza bem clarinho e cobriam quase todo o corpo deixando apenas as mãos, o pescoço e a cabeça à mostra. “E seus rostos eram tão bondosos!”, mais uma vez, ele pensou.

“Mas como eles saíram dos moinhos?”

‒ Se você quiser podemos conversar de forma comum com perguntas e respostas em voz alta – o homem, que já havia falado antes, sugeriu.

Anemoon olhou para o homem e concordou com a cabeça.

‒ Então, precisamos nos apresentar. Sou Trada – o homem se apresentou.

‒ Trada? Que nome esquisito!

‒ Sou Dren ‒ o outro homem se apresentou.

Anemoon estava muito surpreso.

‒ Sou Medra – a mulher que já havia conversado antes falou.

‒ Sou Cetra – também a outra.

‒ E sou Hadre – a terceira mulher falou.

O menino preferiu não fazer nenhuma observação, simplesmente falou:

‒ Prazer em conhecê-los.

‒ A alegria é muito grande em estarmos aqui com você – Trada falou.

Anemoon estava surpreso, curioso e ao mesmo tempo feliz.

Os cinco também estavam felizes.

‒ E os moinhos… Como vocês saíram de lá? ‒ o menino perguntou.

‒ Anemoon, precisávamos chegar a você e como é encantado pelos moinhos, nada melhor do que ter toda sua atenção por meio de algo de que tanto gosta – o homem começou a explicação.

Trada era o mais falante e, sem nenhuma vaidade, parecia ser o líder pelas explicações dadas.

‒ E por que eu? ‒ o menino quis saber.

Os dois homens e as três mulheres olhavam para ele com imensa bondade. E em banquinhos como o de Anemoon, eles se sentaram.

‒ Porque você, meu querido, sempre tem bons pensamentos e tanto deseja um mundo mais feliz – Medra falou. ‒ Observamos você todos os dias quando está aqui admirando seus moinhos. Pois bem, e o movimento que as hélices fazem cria energia e por meio do seu olhar se transforma em bondade em seu coração que é lançada para muitas direções… para muitas pessoas. E mesmo com a dor da ausência de seus pais, você ama e tanto amor há em seu coração.

E Anemoon observava com seus olhinhos tão brilhantes e surpresos, pois esse sentimento ele nunca compartilhara, estava em seu interior… pensava que estivesse só em seu coração e o pequenino não imaginava que seu pensamento e sentimento pudessem ser desvendados assim, tão perfeitamente. E seus olhinhos permaneciam brilhantes.

‒ Mas… quem são vocês? ‒ ele insistiu. ‒ Não apenas os nomes… de onde vieram e o que fazem? ‒ o menino insistiu.

‒ Anemoon, somos cinco habitantes de um lugar onde a bondade é o maior sentimento, onde o bem é vivenciado. E continuamente observamos os diversificados lugares e conhecemos quem são as pessoas que criam essas luzes cintilantes, pois a bondade possui uma luz muito radiante, é o oposto de sentimentos não muito bons que emitem uma nuvem triste e acinzentada. Em muitos casos, as pessoas desconhecem que pensamento e sentimento emitem formas e cores ‒ Trada fez uma observação.

‒ Mas sou apenas um menino – ele tentou explicar.

‒ Mas seus sentimentos são inteiramente brilhantes e bons – Trada falou.

‒ E o que querem de mim? ‒ o menino perguntou.

‒ Quisemos conhecê-lo porque é muito jovem e amoroso e isso nos sensibilizou. Também viemos para fortalecê-lo a continuar nesta caminhada de bondade que você já trilha para ajudar ainda inúmeras pessoas, animais e flores…

O menino suspirou e soltou um leve sorriso.

‒ Sim, penso muito em ajudar as pessoas e penso em como posso fazer. Meu avô me falou que não sou como os outros meninos… que pareço de outro mundo, mas ele não me falou de qual mundo – sorriu.

Os dois homens e as três mulheres também sorriram, eles sabiam que Anemoon, como os moinhos de vento, levaria adiante o sopro da bondade e do amor. Talvez Anemoon também fosse do mesmo mundo que eles.

E os cinco voltaram por onde vieram e os moinhos de vento levaram todos ao seu destino.

O menino acordou de seu hipnotizante cochilo. Esfregou os olhos. Olhou para os moinhos que giravam com o vento. Lembrou-se de alguma coisa, mas não dos detalhes. Sorriu… sorriu feliz, mas não por se lembrar, sorriu por olhar os moinhos e por algum motivo sentir-se com mais vontade ainda de querer ajudar o mundo, na verdade, de realizar o compromisso assumido antes de vir para o plano destes moinhos terrenos de vento.

(Cínthia Cortegoso)

O menino e o horizonte

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

Pode ser que o domingo seja dia de passeio somente no planeta Terra, pode ser que seja dia de passeio nos outros planetas também.

Como domingo, ainda na Terra, é dia de muitas brincadeiras, comida mais elaborada, sobremesa mais gostosa, é também dia de montar casinha para as meninas e jogar futebol na pracinha para os meninos.

E foi exatamente o que aconteceu.

Por volta das três da tarde, Gabriel foi em direção à pracinha onde se encontraria com os outros meninos, os amigos de futebol. De longe, já viu a bola voar pelo céu; o aquecimento começara. A trupe era de oito a dez meninos com idade entre dez e doze anos.

Eram meninos simples. Suas famílias não tinham muitos recursos financeiros, mas tinham muita disposição para o trabalho e para o ensino dos bons costumes para os seus filhos. Todos estudavam na pequena escola do bairro que, por não ser muito grande, podia ser bem cuidada.

Mas era domingo, era dia de brincar e início das férias. Somente na volta às aulas eles se lembrariam da escola bem cuidada do bairro.

E a trupe estava muito animada, cheia de alegria e muita graça, mas depois do aquecimento, a condição era outra, ou seja, muita concentração para o jogo de futebol. Naquela tarde, havia apenas nove meninos. Faltava um para formar dois times de cinco e sobrava um para dois times de quatro. Nenhum queria ficar de fora. Grande dilema.

O tempo passava, até que um menino veio se aproximando da pracinha e chegou aonde os outros estavam.

Imediatamente uma pergunta surgiu:

‒ Quer jogar?

Um pouco desprevenido, mas o menino respondeu:

‒ Sim, eu quero.

‒ Pronto. Tudo resolvido – Gabriel, o capitão do time azul, falou.

Também havia o time laranja, cujo capitão era Fernandinho.

Pronto. Dez meninos. Cinco para cada lado.

‒ Qual é o seu nome? ‒ Gabriel perguntou ao desconhecido garoto.

Os meninos estavam por perto, pois também queriam conhecê-lo e saber o seu nome. Curiosidade: característica imprescindível do ser humano.

O menino demorou um pouco para responder, parecia pensar antes ou, então, não ter compreendido. Mas, enfim, falou:

‒ É… Amadeo.

Os meninos nada comentaram, mas a indagação dos olhares era a de que ainda nunca tinham ouvido esse nome. O que importava era o número igual de jogadores para os lados e se ele, Amadeo, fosse bom de bola, poderia até tornar-se um do time e, o melhor, tornar-se amigo da trupe.

O novo participante ficou no time de Gabriel, time azul. Não havia árbitro, quem advertia as jogadas mais perigosas ou inadequadas, eram as gargantas do time adversário. Uma gritaria só, então, sabia-se que algo havia sido irregular.

O jogo começou.

Como goleiros, eram os meninos não tão espertos para a corrida e nem muito magrinhos, mas com concentração e agilidade para esticar os braços.

Todo início de jogo é uma correria só; todos estão entusiasmados e descansados.

Amadeo ainda não havia se destacado em nenhuma jogada, só fizera mesmo o trivial. Os garotos do time azul não estavam tão contentes com o novo companheiro; eles esperavam jogadas mais incríveis, gols a mais e uma vitória inesquecível com a ajuda de Amadeo. É, não estavam muito contentes, não.

Até que, de repente, ele, o novo companheiro, fez uma jogada extraordinária, pareceu flutuar sobre a bola e, em vez de ir para o lado mais esperado, fez um drible muito diferente de tudo o que os outros já tinham visto pela televisão.

A comemoração azul foi intensa, quantos abraços, risadas e o grito uníssono. “A… ma… deo…” repetidas vezes.

Quanto ao time vermelho, ficou de boca aberta com o incrível drible.

E Amadeo recebera muitos abraços, toques na cabeça e tamanha vibração. E os meninos compartilhavam o momento como se há muito se conhecessem, com naturalidade e carinho.

Até quando se via o brilho do sol, também poderia ver-se a brincadeira na pracinha, mas do finalzinho da tarde para o início da noite é questão de alguns segundos e de repente a noite está formada. Mas antes de isso acontecer, para evitar as broncas de mãe, os meninos foram logo se despedindo e cada um buscou o caminho de casa. Na verdade, um deles, não. Amadeo não tinha casa para voltar. E os outros, tão preocupados em não levarem bronca nem se deram conta do novo colega.

Amadeo foi distanciando-se pela rua escura; quem olhasse de longe poderia perceber um contorno iluminado suave em seu corpo. Talvez não mais voltaria àquela cidade, muitas outras o aguardavam e seguiu para um certo tipo de luz que o esperava.

Chegou e em instantes tudo desapareceu pelo horizonte. Mas olhos sempre existirão a observar.

E os olhos de Gabriel assistiram a todo esse momento de Amadeo, da simples janela de seu quarto. Esses olhos observaram o sumiço do brilho no infinito céu. No entanto, quem fora observado também podia sentir de onde vinha a observação e Amadeo, com uma roupa diferente, não mais vestido de aspirante a jogador infantojuvenil de futebol, visualizou mentalmente a imagem do capitão do time azul, olhando pela janela. Mas o menino precisava continuar seu destino.

Uma viagem sem nome, roteiro, nem objetivo ainda e inexplicável para o menino Gabriel que ficou mais uns instantes olhando pela janela até perder o foco da pequena luz entre os tímidos brilhos nascentes das estrelas no fundo azul-escuro do céu.

Com todas as perguntas e a curiosidade latejante, mesmo assim, não havia muito o que fazer. Como Gabriel poderia explicar? Pensaria em um caminho ou esqueceria tudo aquilo, se bem que em alguns segundos nem ele próprio saberia afirmar a verdade plena da ocorrência. Encostou a janela.

O novo amanhecer não fora como os antigos, ou melhor, os comuns amanheceres antes do anterior anoitecer. O sentimento do capitão do time azul era drasticamente incomum; o menino sentia como se algo fora roubado de si, estava ali mas incompleto… não sabia o que havia ocorrido, nunca sentira essa sensação.

Tentou começar um novo dia como os comuns que já havia vivido; no entanto, como viver se algo lhe falta para estar vivo e, ainda, não compreender sequer um pequeno início do que poderia estar acontecendo.

As férias mal haviam começado e toda euforia e entusiasmo pareciam ter ido embora com a luz do dia anterior… Como entender?

A mãe logo percebeu a mudança.

‒ Tudo bem, Gabriel? Parece que está em outro mundo hoje! O que aconteceu? ‒ a mãe, preparando o ralo café da manhã para o filho, perguntou.

‒ Hã…? Também não sei, mãe. Estou desanimado… sem vontade de brincar…

O menino, sentado, falou escorando a cabeça na mão direita, cujo braço, escorado, estava na mesa rústica de madeira. O pai já tinha ido trabalhar, estavam apenas mãe e filho… e também o cachorro vira-latas chamado Sabugo que observava o andamento da conversa da varandinha da cozinha.

A mãe observou o filho, todos os detalhes, pois mãe é expert em filho. Fez algumas perguntas e pôde constatar que estava triste, talvez nunca vira o filho com tamanha tristeza. Então, continuou com algumas perguntas até o filho, que muito confiava em sua mãe, contar-lhe todo o ocorrido do dia anterior.

O início da brincadeira com o futebol, o novo menino a participar, a hora de voltar, até aqui realização normal. Quando o filho contou sobre o menino Amadeo e a luz, ela compreendeu, inexplicavelmente, o profundo sentimento… toda a sensação que o filho estava sentindo. E pensava como algo poderia ser tão intenso e tão sem explicação. E como poderia ajudar o pequeno e a quem poderia recorrer? Enquanto isso a tristeza assolava o menino.

A sensação que, com muita dificuldade, recebeu uma nominação foi a palavra saudade proferida pela voz fraca de Gabriel.

‒ Saudade… saudade – ele falou duas vezes

‒ O que, meu filho? ‒ a mãe logo perguntou e sentou-se à mesa.

‒ Saudade…

‒ De quem? Do quê? ‒ ela novamente logo perguntou.

‒ Penso em Amadeo e em seguida vejo um campo lindo molhado de chuva e sinto um vento muito frio… mamãe, será que estou ficando louco?

‒ Filho meu, não pense assim! Eu não tenho muito estudo, mas ouvi falar que existem outros lugares com vida… outras maneiras de viver ‒ a mãe tentou explicar.

‒ Não entendi, mãe ‒ o filho respondeu.

‒ Também não sei explicar muito, mas li alguns livros sobre a continuação da vida em outras formas.

‒ Entendi menos ainda, mãe.

‒ Certo dia, abri um livro explicando que em muitos outros lugares também vive alguém. Como em outros planetas, planos, mas não sei bem explicar. Não somos sós. E que alguns podem nos visitar por possuírem pouco mais evolução… não sei bem, filho ‒ a mãe se esforçou, porém, não foi capaz de esclarecer muito.

Os olhos do menino olharam os da mãe; um discreto sorriso sem graça apareceu no rosto do filho. Há momentos e fatos cujas explicações não são capazes de esclarecerem, mas a atenção e o carinho podem muito ajudar. E foi o que aconteceu. Com esforço, Gabriel comeu um pouquinho para ver a alegria, pelo menos, nos olhos da mãe.

Talvez tivesse crescendo e conhecendo as dores da vida, mas o motivo era irrisório para isso; certamente, não seria.

Gabriel recusou também o jogo de futebol na tarde do dia. Embaixo do pé de laranjeira, no quintal, aguardou mais um entardecer, pois foi o momento do ocorrido no dia anterior, estava esperançoso que neste pôr do sol teria a resposta para tudo aquilo. Correu para dentro de casa e foi para seu quarto no mesmo horário, buscou a mesma posição e através da janela olhou para o infinito horizonte implorando por uma explicação.

Os olhos não piscavam e a ansiedade por uma resposta era mais alta que o silêncio cinza do quarto. Os minutos se passaram e o tempo avançou, nada aconteceu. O desânimo abraçou o menino e a tristeza invadiu-o. Como poderia viver daquela maneira para sempre? Seu sentimento estava profundamente doloroso.

A mãe, no decorrer dos dias, não sabia o que fazer. Então, o filho não quis mais sair do quarto, também não fechava a janela; o horizonte era a única direção de seu olhar. Uma saudade o imobilizou, não se levantava mais da cama. A tristeza na mãe não havia como aumentar. O pai simplesmente trabalhava.

Quando se completaram dezessete dias, uma voz chamou, pela porta da cozinha, o nome Gabriel. Era o doutor Apolônio, senhor de próximos setenta anos. O pai, com sacrifício de dinheiro, pagara uma consulta para o filho. O doutor entrou no quarto, acompanhado pela mãe do menino, observou e consultou de maneira criteriosa, e não encontrou nenhum vestígio de enfermidade física.

A mãe, em silêncio, ouviu as explicações do doutor e em seguida acompanhou-o à porta.

No dia seguinte, o padre foi chamado. Entrou no quarto, onde o menino, tristonho, estava deitado. O homem humilde e amoroso fez suas orações e consolou a mãe, entretanto, não havia mais o que fazer; ela também o acompanhou até a porta.

Passados dois dias, os amigos de futebol foram visitá-lo, mas os olhos tristes do menino não se alegraram; a mãe, mesmo assim, serviu bolachas de maisena com leite gelado aos meninos.

No outro dia, um pastor da igreja da rua detrás também veio para ajudá-lo. Teve boa vontade, mas deixou o menino como o encontrou.

A mãe não sabia a quem mais recorrer e o filho, desfalecido, encontrava-se na cama simples. Completaram-se trinta dias; exato, um mês.

E como as conversas correm pelo vento, o ocorrido foi parar do outro lado do grande rio, num povoado antigo de cultura milenar. Naturalmente, os acontecimentos nunca chegam aos ouvidos, de fato, como aconteceram, ou se apresentam muito a mais, muito a menos ou totalmente distorcidos. E naquele povoado havia um homem com sabedoria; na verdade, ele era mais conhecido como bruxo do povoado. Um bruxo é assim denominado quando conhece algo a mais, dizem ainda, sobrenatural. Mas o próprio bruxo ri disso tudo, pois se existem inúmeras e imensuráveis coisas na vida, tudo, então, tende a ser simplesmente natural.

No entanto, o homem se comoveu, atravessou o rio e buscou a casa do menino Gabriel. A mãe, surpresa ‒ pois o bruxo do povoado raramente saía de sua casa, atendia, em sua choupana, quem o procurasse ‒, recebeu-o com grande respeito como todos os que visitaram o filho, acompanhou-o ao quarto onde estava o menino.

O homem, simples, aproximou-se da cama, observou com compaixão o franzino corpo esticado cuja respiração era tão discreta. O senhor sentou-se na cadeira, que permanecia desde o início do acontecimento, de frente para o menino.

Pegou a mão magrinha e morna, não perguntou nada, pois o que ouvira já bastava. A mãe também nada falou. O homem fechou os olhos e segurando a mão magrinha e morna, começou a sentir a sensação do frágil ser. Sentiu os muitos sentimentos, mas o da tristeza era prevalecente, também pôde ver algo sumindo pelo horizonte e sentir que outro coração também sofria.

Continuou concentrado e pôde, aos poucos, compreender o motivo que fortalecia o sofrimento. Quando algumas janelas ficam semiabertas na alma, certos encontros, inconscientes, mas de harmonia, amor e sintonia extremos tendem a acontecer e caso não haja oportunidade para os corações caminharem juntos e apenas sentirem a eterna emoção sem o apoio da compreensão racional, as almas podem muito adoecer mesmo em estágios e planos diferentes. Não importa se o corpo é de criança ou não, o reconhecimento é fato.

E o bruxo, com instrução recebida das gerações anteriores, pôde, mais uma vez, compreender o ocorrido e ajudar outra alma fragilizada. O entendedor de almas, com ternura que lhe era peculiar, falou as seguintes palavras para o menino na cama:

‒ Gabriel, acorde e volte para o seu caminho. Há tanto a ser vivido, construído e tantas pessoas para amar e tantas para o amarem ‒ o homem falava e aguardava alguma reação do menino. ‒ Você e Amadeo são espíritos milenares… muito já viveram juntos e muito viverão, mas, agora, cada um precisa, em seu plano, realizar o propósito necessário… volte, querido menino, quão maravilhoso é o seu ideal ‒ o homem falou.

Alguns segundos passaram-se, os olhos começaram a querer-se abrir e as mãos mornas e magrinhas fizeram suaves movimentos. Vagarosamente, Gabriel iniciou o despertamento como alguém que se desperta de um profundo sono. Abriu os olhos; o bruxo estava sentado com olhar raso de lágrima emocionada e no rosto da mãe, a lágrima emocionada já escorria.

O menino, fraco, deu um leve sorriso e perguntou:

‒ Senhor bruxo? O que faz aqui?

‒ Olá, menino Gabriel! Vim apenas visitá-lo.

O menino sorriu e agradeceu. Olhou para a mãe e outro sorriso nasceu.

(Cínthia Cortegoso)

Um príncipe chamado João

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De Londrina-PR

O menino João não morava em um castelo, nem se vestia com roupas finas, muito menos tinha empregados à sua volta. Ele não falava idiomas diferentes do seu e nem adquirira cultura. Para comer, tinha apenas o necessário para sobreviver. Brinquedos, ele mesmo construía com pedacinhos de pau, tampas de garrafas plásticas e outros intermináveis badulaques que encontrava. Adorava estudar, mas nem sempre podia ir à escola, era longe demais e quando não podia então ficava em casa estudando por conta.

Amigos, João tinha demais; as pessoas se aproximavam e desejam essa amizade sem nenhum interesse, pois o menino era a simplicidade e pobreza em grau elevado, também no mesmo grau era de educação, atenção, amor, fraternidade, bondade, afeição, caridade. Era encantado pelos animais, plantas e pelos pequeninos insetos. Atraía muitos desses para bem pertinho sem querer, assim ele pensava.

O local onde morava era muito simples e muitas outras pessoas ali moravam também. Havia as mesmas dificuldades e sofrimentos paras seus moradores e os seus olhos eram de tristeza e desesperança, no entanto, os olhos de João reluziam esperança e amor. Eram olhinhos de luz.

O menino, certo dia, teve bastante paciência e carinho com um cavalinho-de-deus que se enroscou numa planta com muitos galhinhos finos. Se fosse outro menino, seria mais provável deixar o pequenino inseto, preso, lá mesmo; entretanto, com calma e amor e falando muitas frases bondosas, João desvencilhou o pequenino verde e o devolveu à liberdade.

Outro dia ainda, observando uma menina mais nova que ele, em frente a uma mercearia do bairro simples, e já conhecendo o motivo por aquela visita ‒ enorme vontade, há tempo, de comer um doce ‒, João não teve dúvidas, foi até o dono do local e, com toda educação e delicadeza, pediu-lhe que lhe desse uma guloseima, pois não podia pagá-la, para, assim, presentear a pequena menina que estava doente de tanta vontade de comê-la. E realmente ganhou o doce e presenteou a pequena.

Os gatinhos, mesmo ariscos por natureza, viam de longe o menino João e vinham a seu encontro; os cachorrinhos eram seus grandes companheiros; os pássaros dançavam a revoada feliz; as outras crianças pobres corriam para perto dele.

As pessoas dali sempre diziam que o menino tinha mel, tamanha era sua doçura e não menos a sua bondade.

E tanto sofria com as maldades observadas de toda espécie, das insignificantes às nocivas demais. Ele não compreendia como o ser humano conseguia ser ainda assim, mas, ao mesmo tempo, compreendia, de alguma forma, que cada um se encontra num estágio com suas proezas, defeitos, dificuldades, tristezas, dores e conquistas. Cada um com sua responsabilidade. No entanto, no coração de João as benéficas qualidades ocupavam quase todo o espaço, seu coraçãozinho era muito bondoso.

E numa noite de frio durante a madrugada, como a única forma de aquecer e iluminar as casas era por meio de lampiões acesos e todas elas possuíam um, foi numa das casas vizinhas da de João que, por um descuido, ao deixar o lampião muito na beirada da mesa, ele caiu e rapidamente o fogo se alastrou sem ter chance de abafá-lo. A estação seca de inverno contribuiu para o alastramento do fogo e como as casas eram construídas de madeira e outros materiais inflamáveis e muito próximas umas das outras, em pouquíssimo tempo, uma enorme chama criou vida e ganhou altura.

O desespero tomou conta do simples lugar; quem conseguiu escapar a tempo tentava buscar ajuda aos menos felizes que, lamentavelmente, não tiveram a mesma sorte. Mas o fogo ganhava força e suas chamas imperavam naquele triste momento. Choro, desespero, dor embalavam o local. João tentou, com outros, várias maneiras de salvar os desafortunados, no entanto, muitos deles ficaram presos em seus casebres.

A fumaça cinza e entristecida tomava o ar; por ser pobre e muito distante o bairro popular, o socorro demorou a chegar e menos pôde ser feito pelos sofridos moradores. Após o desastre da chama e a ajuda dos bombeiros, felizmente, o incêndio foi apagado e também foi realizado o possível para auxiliar os necessitados.

O desconsolo abraçou o lugar. Todos perderam suas casas e o pouco que tinham. O que seria deles? Era o comum pensamento. Os sobreviventes estavam totalmente enfraquecidos pelo esforço, pelo susto, pelo desespero. Uns andavam de um lado para outro sem noção do que fazerem; não havia quase nenhum lugar de pé; um ou outro casebre insistia em continuar, as cinzas de tudo estavam no chão. E muitas pessoas haviam morrido; João perdera o avô e a avó, seus grandes companheiros, aliás, sua única família.

O menino olhava para tanta destruição e já doía muito a dor da perda dos avós. Mas João tinha força e muita fé, acreditava que para tudo havia uma causa e sua consequência e se já havia tanta desesperança e tristeza não seria de nenhuma ajuda ele também se desesperar e ser mais um a precisar de cuidados.

Na verdade, João foi a luz naquela escuridão de lamento, foi a esperança para aqueles corações sem vida e desanimados, foi os braços a embalar as crianças chorosas, foi as mãos com água e comida a alimentarem os restantes moradores, foi o consolo aos animaizinhos machucados e carentes, foi a paz e o amor, foi as palavras doces de uma oração a um desvalido em sua última hora, foi a coragem dos socorristas, foi a determinação no momento da fraqueza em continuar, foi o bálsamo no olhar e a doçura ao falar, João foi até cada sobrevivente e abraçou cada irmão seu. E o céu, em silêncio, assistia a tudo.

O menino era uma alma bondosa que só conhecia o desejo de amparar. João, de fato, era um anjo em forma de menino, animado com a luz de Jesus, que em mais uma existência veio para amar e ensinar com bondade; as características, inclinações e conquistas serão presentes em todo tempo e lugar.

Com pelo menos um anjo assim, Deus abençoa os grupos de seus filhos. São aquelas pessoas que, com benevolência no olhar, fortalecem outros olhares, curam e enchem de vontade os outros corações para quererem viver e melhorar-se.

E a mão suave de João consolava mais uma criança que acabara de ser resgatada com vida de um dos casebres acinzentados pelas chamas.

(Cínthia Cortegoso)

Os violinos (O luthier)

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De Londrina-PR

Pierre Chantal era um luthier que morava na casa cinza com muitas janelas. (1) Ele era francês. Também havia muitos gatos na casa, eram os seus “chats”, gatos em francês, mas sem pronunciar as duas últimas consoantes, simplesmente [chá]. A língua francesa é muito misteriosa, pois se escrevem todas as letras, mas nem todas são pronunciadas. O senhor Chantal também era misterioso e ainda construía violinos.

Dois dos gatos eram cinza; outros dois, brancos; outros dois, pretos e apenas um, malhado, com fundo branco e pintas amarronzadas, total de sete gatos. E como havia sete grandes janelas, cada gato se exibia, sentado, no parapeito de uma delas, e sabe-se lá como, cada dia um gato ficava numa janela, com rodízio em sentido horário, e durante a semana não se confundiam… gatos são gatos… inteligência, observação e uma certa metidez. E tanto lambiam seus pelos, suas patas. Tomavam, rigorosamente, o sol da manhã, sabiam a hora do almoço; à tarde passeavam pela redondeza e por volta das cinco e meia da tarde, antes de a empregada fechar as janelas e ir embora, os sete gatos retornavam para não mais saírem à noite, só, mesmo, no dia seguinte.

Quanto à empregada, ela se chamava Seraphine e trabalhava para o senhor Chantal há mais de trinta anos.

E o senhor Chantal, muito pouco, saía de casa. Ele transformou uma área bem grande de dentro da casa em sua oficina. As duas salas espaçosas se tornaram seu local de trabalho.

Naquela oficina com sete janelas, muitos violinos foram construídos. Violinos coloridos, grandes, pequenos, alguns que só tocavam músicas russas; outros, apenas músicas italianas; outros ainda, músicas japonesas; ainda outros foram construídos, simplesmente, para tocarem músicas sacras. Alguns violinos foram construídos para crianças; outros, para jovens; outros, ainda para adultos e uma quantidade, para as pessoas mais velhas.

O senhor Chantal amava construir violinos ou talvez isso o ajudava a esquecer algo. Ele construiu violinos durante quase toda a sua vida. Ele não se casou, não formou família, não teve filhos por isso não brincou com esses filhos; ele nem conheceu outros países, nem pessoas; nem quis ver mais vezes o céu, admirar as estrelas e sentir o calor do sol. Ele nunca foi à feira às terças-feiras; Seraphine quem ia, ela pagava as contas, fazia as compras e também cuidada da conta no banco. O senhor Chantal, a maioria das vezes, recebia o pagamento dos violinos por depósito bancário; outras poucas vezes recebia em dinheiro em sua oficina.

E os gatos… eles não foram comprados, nem buscados em algum lugar pelo senhor Chantal. Os gatos foram aparecendo, na verdade, um foi chamando o outro. E, incrivelmente, quando somaram sete, mais nenhum gato apareceu. Sete janelas; sete gatos.

Durante o dia todo, o senhor Chantal ouvia música clássica, calma, em volume baixo; os gatos pareciam gostar, pois ficavam sentados no parapeito da janela com os olhos mais fechados que abertos. Também eram calmos e nem miavam muito, só mesmo quando estavam com fome de leão. Mas a senhora Seraphine não os deixava com tanta fome assim, colocava ração para eles e também água limpa todos os dias pela manhã, se precisasse colocava mais água durante o dia, mas ração era só uma vez, mesmo assim, nunca ficaram com fome de leão.

No vidro de bolachas sempre havia umas bolachinhas de nata que Seraphine fazia; o senhor Chantal gostava de comer umas delas às quatro da tarde com uma xícara de chá e ele deixava algumas no canto de um pequeno tapete na sala para os gatos quando chegassem do passeio vespertino. Eles quase sempre comiam tudo.

Cada gato tinha um nome e todos os bichanos eram educados e mansos e eram sempre chamados pelo nome tanto por Seraphine quanto pelo senhor Chantal, mas o luthier pouco os chamava, ele só queria mesmo construir violinos. Isso não quer dizer que ele não gostava deles, apenas não os chamava, pois os bichanos sempre estavam por perto e estes também gostavam do senhor Chantal e gostavam também de Seraphine. Era na verdade, um relacionamento sem cobranças, só isso.

Senhor Chantal e Seraphine pouco se conversavam, mas muito se entendiam.

Há uma revelação: ele, todo dia 15 de cada mês, saía às oito horas da manhã, com algumas flores colhidas de seu jardim, e retornava entre dez e dez meia.

Senhor Chantal trabalhava com roupas formais, calça com vinco, camisa de manga comprida, normalmente de cor clara, e suspensórios. Vestia-se assim, pois se algum cliente chegasse já estava arrumado para recebê-lo, era isso que um dia explicou para Seraphine. E ele recebia encomendas de vários países, mas essas encomendas ‒ os violinos ‒ eram feitas por telefone. Então, depois de prontos, os violinos eram despachados pelo correio que vinha busca-los na casa do luthier.

Sábados e domingos eram dias comuns, de muito trabalho, apenas o fazedor de violinos encerrava o expediente às quatro da tarde, hora do chá com bolachas, e ia conferir seu belo jardim feito, aos pouquinhos, durante cada sábado e domingo depois das quatro ao longo da vida.

Com as mãos, enlaçadas, para trás das costas, o senhor Chantal observava as flores e sabia detalhes de cada uma. Olhava minuciosamente e também conversava com elas; isso ele havia aprendido quando era bem criança, com seu avô que o criara, este lhe havia ensinado que as plantas tinham sentimento. E esse aprendizado fora muito apreciado por Pierre Chantal.

E observava e fazia um carinho de leve nas folhinhas, mas não em todas, eram muitas. E naquele domingo, depois de o jardim ter sido observado pelo olho clínico do próprio cultivador e também de ter sido regado, pois o senhor Chantal usava um belo regador antigo e afirmava, nas poucas palavras, que a regagem por regador era mais carinhosa, o homem se recolheu quase seis da tarde; as andorinhas buscavam os ninhos, todo mundo quer voltar para casa, para quem ama. O sol estava alaranjado e bem fraquinho sumindo no horizonte. O dia estava acabando para começar a noite.

E para o senhor Chantal, a noite não era tão bem-vinda, era o período que podia ouvir mais os sentimentos, sentir mais saudade… saudade.

Os gatos eram os companheiros, mas eles eram quietinhos e dormiam cedo, logo depois de comerem alguma ração sobrada no potinho ou algum restinho de bolacha no tapete.

Mais uma noite e o senhor estava sozinho, em sua casa, com a saudade e os sentimentos.

Ele gostava de assistir a programas sobre cultura e músicas clássicas, mas, muitas vezes, apenas olhava para a tela da TV sem assistir a nada. E quando algum programa apresentava concertos com peças mais dramáticas, então, seu olhar ainda mais se perdia no espaço e algumas lágrimas escorriam pela face do senhor francês.

E nessa noite, quando a saudade não cabia mais em seu peito, e a tristeza o tomara, senhor Chantal, em desespero, suplicou a paz que há muito não sentia, desde quando começou a construir violinos. Num ato desatinado, encolhendo-se na poltrona, com a face banhada, começou a verbalizar sua dor…

‒ Há quanto amo, há quanto sofro… nada mais me resta. Desde aquele 15 de abril do fatídico ano, não mais pude viver… sobrevivo, pois sou insignificante demais para me tirar o que Deus me concedeu… mas confesso que muito já pensei ‒ falava com voz alta que há muito não se ouvia. ‒ Por quê? Por que com tanto amor não tive tempo de doar… para minha Gabrielle… que me deixou por, equivocadamente, comer uma pequenina fruta venenosa, pensando que fosse uma doce fruta comum no parque onde passeávamos uma semana antes de nosso casamento… Por quê? Ajude-me, Pai!

O senhor Pierre Chantal desfaleceu na poltrona. Certamente, vai melhorar, pois fora a primeira vez que exteriorizou seu sofrimento; a cura, enfim, começara.

Sou o primeiro violino a ser construído pelo grande luthier. Sou o início da fase da construção da alegria para muitos corações por meio da música, já que o do senhor francês vivera até agora na aflição dos dias, entretanto, poderá, a partir de hoje, sentir os acordes com mais leveza, pois se permitiu chorar e revelar a dura dor; o pedido de ajuda estava feito, a bondade divina poderá finalmente operar.

A partir do fatídico dia é que o senhor Chantal começou a construir violinos; “Gabrielle amava o som dos violinos”, o senhor Chantal sempre murmurava.

(1) Luthier (palavra francesa, de luth, alaúde: leia-se lutiê): artesão que fabrica ou repara instrumentos de corda com caixa-de-ressonância.

(Cínthia Cortegoso)

O pôr do sol da mesma montanha

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De Londrina-PR

Tomás era um jovem de poucos amigos, mais por sua timidez que por alguma outra característica insociável. Tinha formação profissional e já trabalhava. Acabara de completar vinte e três anos e morava em uma pequena cidade no sul da Itália, o mesmo lugar onde nascera.

Era bem visto, principalmente pelos mais velhos, devido à disciplina e empenho que demonstrava com os estudos e com o trabalho, isso desde criança.

Todos os dias ao fim da tarde quando voltava do “lavoro”, Tomás não resistia ao encanto da “Montanha dos Sentimentos”, como era conhecida aquela montanha. Era encantada, pois ao assistir ao pôr do sol por detrás dela era como se a mente mergulhasse em emoções, em lembranças que, muitas vezes, não se podiam compreender os acontecimentos nem o tempo no qual ocorreram, porém, um sentimento bastante profundo era sentido nessas ocasiões. Mas nem todas as pessoas da cidade reconheciam ou admitiam esse fato. E o jovem, todos os dias, sentia essa emoção a caminho de casa.

Ultimamente, o sentimento se tornara mais intenso e Tomás necessitou buscar alguma explicação.

Na pequena cidade, havia uma livraria que fora passada de geração; única família detinha esse ramo desde há mais de um século. E foi para lá que o jovem, no sábado de manhã, se encaminhou. Precisava encontrar respostas para as emoções que o visitavam quando estava de frente para a montanha assistindo ao pôr do sol.

Entrou na bela livraria; não havia muita modernidade, mas o estilo clássico bastava, realmente muito aconchegante e acolhedor. Passou os olhos pelos livros expostos, era difícil procurar o que ainda não tinha ideia do que poderia ser. Até que a jovem vendedora veio atendê-lo.

‒ Bom dia, precisa de ajuda? ‒ a simpática jovem perguntou.

‒ Bom dia… preciso, sim ‒ ele respondeu rapidamente.

‒ Procura por algum assunto específico?

‒ Não sei lhe dizer o assunto específico, mas penso que posso começar lhe explicando o que acontece ‒ ele respondeu.

‒ Pois, não ‒ a jovem falou e deu um sorriso achando graça pela resposta.

Um pouco sem jeito, ele começou a explicação sobre o que lhe acontecia quando passava, ao fim da tarde, em frente à Montanha dos Sentimentos.

A jovem vendedora ouvia, com os olhos sorrindo, o rapaz, por sentir sua sensibilidade e também por ter ouvido a mesma história relatada por outras pessoas, porém, sem a intensidade com que Tomás lhe contava.

Ele, um pouco tímido, encerrou sua explanação, aguardando o que a jovem poderia lhe indicar para leitura e também se ela faria alguma consideração acerca do relato. Ela sorriu e lhe pediu:

‒ Por favor, acompanhe-me.

A jovem vendedora caminhou uns dez passos para o interior da livraria e chegou à seção de livros, considerados por alguns leitores daquela cidade, sobrenaturais.

Antes de escolher o indicado livro, ela olhou para o rapaz para saber sua reação, pois havia uma plaqueta para cada seção indicando a categoria pertencente dos livros; essa plaqueta estava intitulada com a discriminação com que alguns leitores consideravam o enredo desses livros: sobrenaturais.

Ele olhou, com surpresa, mas manteve o olhar mais interessado que surpreso. Ela passou os olhos pelo número expressivo desses livros e sorriu quando encontrou o que procurava.

‒ Aqui está ‒ ela falou e passou o livro ao rapaz.

Tomás o pegou, com delicadeza, observou a capa que, aliás, era uma bela fotografia de flores, diferentes, das que normalmente se viam nos jardins das casas da pequenina cidade italiana.

Agradeceu à jovem vendedora e depois de pagar o livro foi para casa, queria logo começar a leitura a qual lhe poderia esclarecer a questão que o acompanhava.

Chegando a casa, fez, com pressa, algumas tarefas de organização e limpeza domésticas ‒ era sábado, o dia escolhido para essas atividades ‒ para rapidamente começar a leitura do livro que poderia trazer respostas para as perguntas sobre os sentimentos em relação à montanha e ao pôr do sol.

Pegou um copo de água e o livro, encaminhou-se para a poltrona da sala simples. Sentou-se, bebeu um gole de água, colocou o copo sobre uma pequenina mesa ao lado de onde estava, respirou fundo. A expectativa era grande. Olhou para a capa e leu o título, “Existências”, e o subtítulo, “A continuada caminhada”.

O rapaz ficou alguns segundinhos olhando para o livro, mas seu coração, muito desejoso, de respostas. E fez o primeiro movimento para abri-lo e começar sua leitura. Leu as primeiras informações e verificou que era a vigésima edição; sua expectativa ainda aumentou. Leu o índice; era tudo novidade, mas sentia, ao mesmo tempo, uma retomada a algo, a algum tempo… local. Então, começou.

Não era longo demais, o livro continha cerca de duzentas páginas, mas o número diminuía se dispensassem as páginas de informações sobre o autor entre outros esclarecimentos que, normalmente, os livros possuem.

A cada mudança de capítulo, Tomás respirava fundo e mais compreendia. “Como este livro está me respondendo tantas questões!”, pensava ele. Ainda se recordava da jovem vendedora da livraria e sorria.

As horas passavam, porém, era como se o tempo inexistisse, somente a leitura… preciosas informações, nada mais.

Quando, crucialmente, Tomás lera a passagem sobre o eterno e profundo amor que, mesmo em dimensões diferentes, os espíritos, de uma forma geral, sentem e os encarnados ainda podem trazer uma saudade inexplicável de lugares e de outros companheiros, definitivamente, o rapaz se identificou e mais lia ininterruptamente as frases, os períodos, os parágrafos e virava as páginas. Os olhos do rapaz estavam brilhosos e concentrados nas palavras esclarecedoras.

E seu coração mais se sensibilizava e lembranças, como flashes de luz, saltavam à sua mente. Primeiro vieram imagens mais generalizadas sem detalhes que pudessem identificar coisas, lugares ou pessoas. A leitura continuava dinâmica e mais informações lhe eram apresentadas. E outras imagens lhe saltaram à mente, imagens mais nítidas, mais familiarizadas; ele começou a sentir uma emoção intensa e comovente.

A cena com maior clareza foi quando o rapaz viu num quintal simples numa região parecida com a atual. Havia sua mãe e seu pai, alguns avós, irmãos menores e outros com emancipação natural pela idade. Estavam felizes.

Os olhos de Tomás se encheram de lágrima, pois o jovem passou a identificar as pessoas que se apresentavam em sua lembrança. Acervo da alma.

Identificou, pelo olhar, uma de suas irmãs que fora a mãe que há poucos meses falecera; o pai tinha os mesmos olhos do irmão mais novo de agora que morava em outra cidade; uma das avós tinha o doce olhar da irmã mais velha que partira em decorrência de uma inexplicável doença. E a montanha, como em flashes brilhantes, sempre aparecia durante a revelação. Outros momentos foram resgatados pela lembrança permitida, até que se viu de frente para a montanha e o dourado do pôr do sol iluminava a paisagem. Observou toda a imagem e o desejo era compreender essa emoção cotidiana do fim de tarde. Quando, com a mais decidida persistência, viu um casal jovem, deitado, observando os raios de sol se esconderem atrás da enorme montanha. Firmou seu olhar para identificar quem poderia formar o casal. Seu coração começou a disparar. Com esforço conseguiu ver os olhos dos dois jovens. Com a liberação de toda aquela surpresa, o coração não sabia mais pulsar galopava querendo voltar ao momento de tão profundo amor.

Os olhos do rapaz eram os mesmos de Tomás e os da jovem moça brilhavam com a mesma intensidade que os da atenciosa vendedora da livraria que lhe indicara o livro. E compreendeu que em todos os fins de tarde o apaixonado casal fortalecia a verdadeira jura com as seguintes palavras: “Te digo que já és parte de mim e que respiras pelo meu suspiro, que vês pelos meus olhos, e que pulsas em meu coração”.

Espíritos ligados pelo tão profundo e real amor podem trazer consigo as impressões vivenciadas, o sentimento amoroso e a eterna saudade de quem já foi um dia seu bem-querer.

A indígena menininha

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

Dily dançava sob os raios do pôr do sol. Ela dizia que era seu agradecimento por mais um dia maravilhoso. Na aldeia onde morava, todos agradeciam à natureza… o ar, a água, o fogo, a terra, as flores, as folhas, a comida, os animais, a vida.

Os raios avermelhados do horizonte para a menina, pensava ela, “eram o aconchegante abraço de Deus”.

Os pequeninos pés pisavam a terra e a grama, sentiam a água do rio e as texturas das rochas e dos cascalhos. Seu rosto recebia o vento formado de liberdade e paz. Seus olhos podiam apreciar as cores e as suas inúmeras tonalidades. Seu nariz sentia os cheiros e reconhecia cada um deles desde o início da primavera ao término do inverno.

Definia com precisão as folhas de floresta ao redor da aldeia; conhecia cada pássaro ou animal de porte grande, médio ou pequeno e ainda os nomeava. Os insetos eram muito observados pelos olhos da menina e com aqueles estes muito aprendiam.

O olhar de Dily era meigo, amoroso e atento. Percebia quando um animalzinho não estava bem ou uma criança estava triste, quando um adulto estava preocupado com algum problema surgido na aldeia ou se a observação eram apenas ações cotidianas em sociedade indígena.

Passou a interpretar para qual lado o vento soprava, pois, dependendo da direção do sopro, podia ser chuva calma ou até temporal. A cada nova descoberta, Dily amava e respeitava ainda mais a natureza. A pequena indígena aprendia todos os dias. Mas ela não conseguiu prever nem impedir a desventura ocorrida em sua aldeia: uma tempestade terrível avassalou todo o lugar e sua família inteira não mais amanheceu no novo dia, não somente os seus familiares, apenas Dily pôde abrir os olhos na manhã após o dilúvio por se esconder dentro de um tronco de uma grande árvore.

E a indígena menininha estava só naquela floresta com fauna e flora tão conhecidas, mas, ao mesmo tempo, numa situação imensamente estranha: sozinha… e ainda tão pequenina.

Começou a observar o desastre no local e seus olhinhos eram muito pequenos para suportarem as lágrimas de tanta dor; a face morena dourada estava tão triste. A menina encontrou a sua família em corpos sem vida, os amigos, os animaizinhos… mas dor sentida foi quando encontrou o corpo de sua amada avó, sua melhor amiga, quem lhe ensinou quase tudo que sabia, sinônimo de amor e de respeito. Dily ajoelhou-se ao lado, pegou a mão, que tanto carinho lhe fizera, e beijou-a. Acariciava o rosto da índia anciã e determinada, mas, também naquele momento, a menina pôde sentir a delicadeza e a suavidade da senhora que somente um espírito em real progresso poderia ter. E sua avó era assim.

Um silêncio choroso estava presente. Dily procurou deixar o corpo da avó e os dos outros em uma posição mais serena e isso foi trabalho para muitos dias. A menina procurou organizar a aldeia da melhor forma, no entanto, reconheceu que não poderia ficar ali, não havia condições em muitos sentidos, então, foi a alguns quilômetros à frente onde um dia havia ido com a avó que lhe dissera que aquele lugar era muito abençoado e profícuo. A antiga aldeia transformou-se num santuário para a menina e o tempo foi indiscutível companheiro na vida da pequena indígena.

Com os meses avançados, Dily não voltava diariamente para fazer a oração na antiga aldeia como fizera no início. A cada novo amanhecer se lembrava dos ensinamentos da avó, como um deles era preservar no coração, por meio do sentimento e pensamento, os que se ama, e toda sua família indígena perdida no dilúvio se encontrava em paz e muito amada no puro coração da menina.

Depois de muitos dias, Dily, numa manhã dourada e de novo feliz, dançou sob os raios do lindo amanhecer, há quanto tempo não fazia. Aquela dança, acompanhada de um tímido canto, era o agradecimento pela vida, pois a menina podia ver a beleza da natureza, sentir o vento fresco e puro, comer a comida natural oferecida, podia reconstruir uma nova estrada a caminhar, uma nova alvorada para viver. E isso estava realizando muito bem.

Até uma moradia havia construído com muito cuidado e eficiência. Novos amigos animais já havia aos montes… e a avó era presente em tudo o que a neta fazia. E em quantos entardeceres o rosto da anciã se apresentava sorrindo para a pequena querendo dizer que a vida continua e o sentimento atravessa tempo e plano e chega ao destinatário amado. E a neta sorria para os olhos que a olhavam.

Conforme os dias se acalmavam, mas trabalho sempre havia, Dily, mesmo com uma casinha bem arrumada, com sua horta, algumas flores em volta, um novo ambiente aconchegante, comida fresca, tantos amigos animais, ela era menininha… gente e desejava muito conviver com outras pessoas. Nesse longo tempo após a grande mudança, Dily vira apenas duas pessoas, uma única vez, um médico e um assistente que visitavam as aldeias daquelas terras. Nessa ocasião, os dois quiseram levá-la para a cidade, mas, com muita destreza, a menina indígena se embrenhou no mato e só voltou depois de dez horas; eles já haviam ido embora.

Portanto, agora era Dily que queria muito ver esses rostos dos quais já fugira. E os dias passavam.

E tantos dias transformaram-se em meses, parecia que a menina havia sido abandonada. E após a única visita nem os dois homens voltaram à aldeia como faziam. De certa forma, por observarem o acontecimento na antiga aldeia e a constatação de única sobrevivente que fugira, o local e a sua proximidade foram encerrados para a lista de visitas que o governo mantinha.

Após quase dois anos de acontecimento, Dily não tinha mais o olhar alegre, mas mantinha-o amoroso, era o seu jeito. E a menina precisava de ajuda, aos poucos começou a adoecer. A pequena indígena precisava de um abraço, do convívio com pessoas que lhe dessem amparo e carinho… e a ausência e a saudade de quem amava e não mais podia estar fizeram com que ela enfraquecesse e adoecesse.

Deitadinha em sua cama de um tipo de capim seco, Dily ficou completamente esmorecida; sua respiração era fraca e seu corpinho, tão frágil, ainda estava mais miúdo. E os olhos da avó viam tudo e ela, configurada em outra dimensão, estava com tristeza ampliada sem poder muito o que fazer, mas todo ser recebe auxílio onde se encontra, no tempo e na forma adequados.

E a dificuldade da pequena continuava, mas ao mesmo tempo o desespero não a detinha, pois bem no fundo de seu coraçãozinho podia sentir a felicidade por reencontrar a amada avó ‒ aqueles sábios indígenas acreditavam na eternidade da vida ‒, mas outro sentimento mais profundo tomou Dily: a valorização dos presentes dias. Sua avó dizia que se os olhos piscassem havia energia para a conquista.

Uma suave névoa leve e completa de bem-estar envolveu a pequena menina que não pôde observar muito menos compreender o ocorrido no momento, porém, sua melhora foi crescente. Seus olhinhos começaram a brilhar, suas mãos se aqueceram e também seus pés, todo o corpinho recebeu a benéfica energia… como um renascimento.

A suave névoa era na verdade, espíritos em socorro pela pequena, os respeitados ancestrais; a avó também observou o amparo e quanto se emocionou pela permissão. Muito discretamente um canto indígena acompanhou todo o ato amoroso.

E no tempo adequado, sem poder contá-lo em segundos terrenos, todo o envolvimento cessou, o que pudera ser permitido assim estava, no entanto, o resultado aguardado; a avó permanecia com olhos bondosos para a frágil menina.

O que estava previsto poderia ser, de fato, até aquela medida de tempo na floresta terrena, na idade de menina. Apenas a sabedoria maior detém esse saber.

Discretamente, a pequena índia começou a se mexer como quem quer despertar de um descanso profundo. Abriu os olhinhos, esticou os braços, estava acordando para uma vida nova. A menina agora, em seu espírito milenar, havia sido restabelecida e sua energia estava vigorosa com uma saudação que lhe viera do lado de fora.

‒ Por favor, tem alguém aí? ‒ uma voz perguntou.

Dily demorou uns segundos a responder, como quem precisa assumir todos os controles do corpo, e respondeu:

‒ Sim.

A menina não conseguiu ainda se levantar e correr para atender como faria antes. Ela estava terminando o processo de despertamento. Conseguiu sentar-se.

‒ Sim – respondeu outra vez.

‒ Posso entrar? ‒ a voz perguntou.

‒ Sim – outra vez.

    Devagar, uma mulher entrou acompanhada de um homem e de outro jovem. Todos vestiam branco.

A menina, sentada na cama, ainda necessitada do recurso de uma nutritiva alimentação, sorriu.

‒ Minha querida, está sozinha? ‒ a mulher perguntou.

‒ Sim.

‒ Oh, meu bem. Vamos ajudá-la.

Os três de branco rodearam a pequena ao amparo necessário. O homem, com todo carinho e cuidado, tomou a menina nos braços e os quatro saíram do local singelo onde não mais poderia abrigar aquele coração com algo abençoado a realizar. Eram novos médicos que cuidariam daquela região.

Quem sabe Dily terá seu nome entre os grandes feitores do bem, como em prêmios notáveis de paz e ciência. No entanto, algo definido é que todo propósito benfazejo será ladeado para o seu cumprimento.

E os olhos bondosos da avó sorriram no horizonte a se dispersarem na natureza.

(Cínthia Cortegoso)

O mistério atrás da porta branca

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

Davi tinha nove anos e morava numa casa bem simples num bairro afastado do centro. Moravam ele, o avô, a mãe e o irmão caçula; o pai vivia em outra cidade por questões profissionais. Todas as manhãs, Davi ia à escola como as crianças do local. Próximo do meio-dia, ele retornava à casa com muita fome.

‒ Mamãe, cheguei – Davi sempre se anunciava.

‒ Olá, filho – a mãe respondia já o abraçando.

‒ Oi, vô – ele cumprimentava o avô e o abraçava também.

‒ Oi, mano – abraçava o irmão.

Em seguida Davi lavava as mãos, tirava o uniforme e vestia uma roupa simples de casa.

A família rotineiramente almoçava junto; o avô explicara que a hora das refeições era sagrada e como eram importantes aqueles momentos.

‒ Como foi a manhã, filho?

‒ Foi tudo bem, mamãe.

A mãe não prolongou a conversa, pois percebeu que o filho estava mesmo com fome, depois do almoço, então, conversariam mais. A mãe sorriu.

O irmão caçula observava e fazia tudo como o irmão, até a forma como Davi pegava os talheres. E o almoço, mais uma vez, foi muito feliz. Agora, sim, poderiam conversar mais, pois com “barriguinha roncando não é fácil, não”, o avô costumava dizer.

E a família ficava ali sentada à mesa deixando os minutos passarem com calma. E a conversa agradável e engraçada acontecia. O avô amava os netos e olhava para eles com profunda ternura.

Mas o tempo passa e cada um precisa cuidar de seu afazer: a mãe e o avô, dos afazeres domésticos; Davi, dos escolares e o caçulinha, dos afazeres de brincar.

Davi foi para seu quarto e fechou a porta. Antes de fazer sua tarefa, como um ritual, sentou-se na cama, fechou os olhos e, com as mãos unidas à altura do peito, começou sua oração. Em segundos, algumas pessoas apareceram no local e ele, com os olhos abertos, agora, viu-as e sorriu para elas. Conversavam e, de algumas delas, recebia conselho e muito aprendizado. Eram seres bondosos e tranquilos, eram seus amigos de verdade. O avô de Davi já lhe havia explicado sobre este mundo aqui e o mundo dos pássaros, pois o avô lhe dissera que quando as pessoas morrem ficam bem levinhas e podem voar para onde quiserem e, muitas vezes, elas vêm em visita, mas não fazem mal.

E Davi sempre recebia, em seu quarto de porta branca, a visita de pessoas leves como os pássaros voando no céu.

(Cínthia Cortegoso)