Category Archives: Meus contos

Alguns contos.

Na estação

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            Talvez o trem nunca havia sido tão aguardado como naquele dia. E as pessoas começaram a descer. Algumas, objetivas, seguiam logo; outras, surpresas; outras ainda com mais alegria e também aquelas cuja tristeza havia tomado conta. Os abraços também eram de muitos jeitos entre os que chegavam e os que lá esperavam. Alguns  abraços, desajeitados, talvez pela distância, mas tomavam um ar mais determinado a partir dos segundos iniciais; outros, de começo, já eram fortes e amorosos, de corações que esclarecidamente se amam e querem ainda mais se amar. Alguns cachorros moradores da estação ficavam por ali observando e pareciam muito acostumados a ver tanta gente de todo tipo. E abanavam o rabo representando conhecer as pessoas. Às vezes, assustavam-se.

            No meio daquela confusão, feito formigas se comunicando, as pessoas logo tomavam o destino, ou sozinhas, ou acompanhadas ou um pouco distanciadas. E seguiam. O trem recebia alguns cuidados para ir adiante. E em minutos, a estação estava calma. As últimas pessoas estavam num passo mais tranquilo, e caminhavam.

            O trem partiu apenas com alguns passageiros para a parada final. Fiquei observando-o até sumir no horizonte esperançoso. A estação estava em silêncio agora.

            Levantei-me do banco, olhei para o lado que o trem chega, nem sinal de nada. Mas o trem acabara de partir.

            Não faz mal.

            Amanhã estarei de volta.

            Quem um dia partiu, talvez queira um dia voltar.

            Hoje era o meu aniversário.

(Cínthia Cortegoso)

Lavandas transcendentais, madeleines e bolo com glacê

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E a menina novamente estava entre os canteiros de lavanda. Não se podia descuidar, Clara sempre corria para lá. Ela recentemente completara seis anos, e talvez por não haver nenhuma criança de sua idade morando próximo, buscava companhia entre as flores. Os pais acordavam muito cedo; o trabalho no campo começava antes de o sol nascer. A avó preparava a primeira refeição da neta que, em minutos, comia e voltava apenas antes do almoço. A avó sorria e lembrava que também já havia sido criança.

Era época da primavera, e o campo estava radiante de lindas cores; a predominante era a lilás. E Clara corria entre os canteiros, conversava, dava risadas verdadeiras, acariciava as pequenas flores e ficava muito à vontade no local. Seus sapatinhos ficavam cobertos de poeira de terra.

O tempo não era sentido, pois ela sempre comentava com a avó ‒ na hora do almoço ‒ que quase não havia brincado ainda de tão rápido que passara. A avó, outra vez, sorria. Clara almoçava, ficava um pouquinho com a avó esperando o sol forte baixar, e querendo mesmo brincar entre as lavandas. Enquanto a menina aguardava, as nuvens não fugiam de sua observação, e os animais, as flores, o mágico, a fada surgiam inesperadamente no céu, ainda mais se o vento estava um pouco mais forte. E a avó confirmava as figuras, pois ela também já havia sido criança.

Com o sol mais ameno, Clara, feito mágica, estava entre suas flores lilases e corria, escondia-se, achava-se, sorria e não parava. Na cozinha da casa sempre havia pequenos vasos com as flores que a menina colhia. Ela dizia a avó que as flores alegravam o dia. E para o fim da tarde não demorava. Os pais de Clara retornavam por onde a filha brincava para os três voltarem juntos. De longe a menina os via e sempre corria ao seu encontro. Os olhos de Clara tinham uma luz de alegria. E, saltitante, a menina vinha à frente. A avó os aguardava na varanda.

Após o banho e o jantar, era o momento de a mãe contar algumas histórias para a filha como ocorria todas as noites. Algumas histórias eram reais, mas outras, inteiramente ficcionais. Clara amava todas. E normalmente antes do fim da historinha, a menina já estava dormindo, mas naquela noite Clara não dormiu, seus olhos estavam abertos e brilhantes. Ela sorriu para a mãe que também sorriu compreendendo possivelmente a expectativa da filha.

No dia seguinte, era o aniversário de sete anos de Clara. A família ainda não sabia, mas todos os amigos da pequena lhe falaram que viriam para cumprimentá-la. Talvez a família não os conhecesse, no entanto sempre estavam com a menina brincando entre as lavandas não só desse tempo.

Naturalmente, no quarto, além de sua mãe, alguns amigos sorriram para a menina que também sorriu de volta.

Clara ainda comentou com a mãe que a avó lhe dissera que faria madeleines(1) e bolo com glacê. A mãe sorriu e as crianças também. 

(Cínthia Cortegoso)

(1) Madeleine é um doce tipicamente francês com a mistura de ovos, açúcar, farinha, fermento, manteiga derretida e raspa de limão, que depois é assada no forno brando, em formatos que lembram conchas.

Estrela de Natal

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De Londrina-PR


A tarde de 24 de dezembro, na casa do senhor e senhora Fontes, transcorria normalmente como tantas outras nesta mesma data. A senhora, mais à tardezinha, prepararia o jantar. O casal não tivera filhos — não por não desejar —, pois a senhora Fontes era frágil demais e seu corpo não suportara a experiência da gravidez. Portanto não aguardavam filhos nem netos e os parentes moravam a muitos quilômetros cruzando o oceano, numa simples cidade de Portugal. Mas como dizia a senhora ao esposo, “somos tão felizes, meu bem”.

O casal passava dos 50 anos. O senhor era responsável por uma grande empresa alimentícia e sua esposa tinha uma preciosa habilidade — herdara de sua mãe — com os bordados finos que já possuíam endereços certos para a entrega e durante todo o ano havia encomendas sempre a mais do que ela podia se compromissar.

Naquela tarde, a senhora Fontes sentiu vontade de preparar algo gostoso para o jantar, embora não tivesse o costume de fazer uma ceia, mas aquele dia ela se sentiu animada para uma comida um pouco mais especial. E já sabia até qual seria o “menu”, uma comida que sua mãe costumava fazer quando a senhora era criança.

O senhor Fontes ficou na sala assistindo a algum filme enquanto a esposa comentara sobre o jantar e logo foi à cozinha. A comida seria o típico bacalhau cozido. E como havia todos os ingredientes em casa, a mulher começou o preparo. A senhora pensou também em uma sobremesa que só poderia ser a tradicional rabanada. E o preparo continuava.

Era visível a alegria com que a senhora Fontes se movimentava na cozinha, até ela mesma observou e estranhou isso, então preferiu se conter, porém a alegria retornava naturalmente. De repente, a senhora imaginou que algum parente poderia cruzar o mar para visitá-la e estava com uma surpresa sensação feliz. Só lhe restava continuar.

Passando das sete da noite, a ceia — um pouco antes — estava pronta e essa ideia da visita — para o seu coração — se fortalecia.

A esposa foi ao banheiro, ajeitou o cabelo e a roupa e dirigiu-se à sala chamando, carinhosamente, o esposo para o jantar. A sua alegria era visível.

Os dois, abraçados, e com o amor dos anos vividos, foram à copa e sentaram-se à bela e farta mesa.

O marido se encantou com a ternura de todo aquele gesto. Fizeram uma oração de agradecimento e começaram a saborear a deliciosa comida e o momento feliz.

Senhor Fontes não cansava de elogiar a esposa nem de dizer-lhe quanto a amava. E seguiu-se um harmonioso jantar.

O bacalhau estava saborosíssimo e depois vieram as rabanadas. Muito surpreso, o marido havia adorado aquela véspera de Natal, pois há muito tempo não faziam assim; esses últimos anos foram apenas noites comuns, talvez por sentirem muita falta dos abraços familiares e não os terem.

E as rabanadas também estavam muito deliciosas. Durante o jantar, o casal riu, conversou, relembrou tantos momentos e era nítido o amor entre eles, mas, bem no fundo dos olhos da senhora Fontes, havia um espaço que desejava ser preenchido.

Os dois nem se haviam dado conta, no entanto estavam à mesa há quase duas horas. E também um suave licor já haviam bebido.

A senhora Fontes sorriu e falou ao marido que era hora de levantarem-se e ajeitarem a mesa e a louça, pois ainda assistiriam a um programa sobre as noites natalinas de Portugal, quem sabe veriam algum parente.

Nesse momento, a campainha tocou. A senhora olhou assustada ao senhor Fontes que também estranhou, mas sorriu para tranquilizá-la e fez sinal que iria atender. Ela permaneceu onde estava e seguiu, com o olhar, o marido que chegou à porta e verificou pelo olho mágico e não viu ninguém. Demorou mais uns segundos e não viu nada por perto, mas resolveu, assim mesmo, abrir a porta.

Olhou e viu apenas a movimentação dos parentes chegando às casas dos vizinhos. Porém um chorinho de criança surgiu. O senhor olhou, assustado, e acendeu a luz da varanda e embaixo de uma das flores havia uma caixinha de papelão e dentro, um bebê recém-nascido enrolado em alguns trapinhos.

— Maria, Maria… — ele chamou a esposa.

— O que foi, José? — ela respondeu perguntando e aproximando-se.

— Olhe, Maria… o que está nesta caixinha.

A senhora Fontes aproximou-se da caixinha e seus olhos ficaram brilhosos de emoção. Pegou, com cuidado, o bebê em seus braços e, preso aos poucos panos que embrulhavam o pequenino, havia um bilhete com a caligrafia tremida e muito singela das seguintes palavras:

“Preciso de uma mãe e um pai, assim como Jesus precisou de Maria e José em Sua vida.”

O casal leu junto o bilhete e olhou-se com a maior emoção sentida e lágrimas vivas.

A senhora Maria Fontes aninhou o bebê aos seus braços e o senhor José Fontes amparou a esposa com o pequeno e entraram na casa. Antes de fechar a porta, o senhor José olhou para o céu e agradeceu: “Obrigado, meu Deus, pelo presente aguardado durante toda a nossa vida. Obrigado”. E encostou a porta. A casa se iluminou com a grande dádiva recebida.

E lá fora o céu estava claro pelas tantas estrelas brilhantes.

(Cínthia Cortegoso)

O presépio da praça italiana

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De Londrina-PR

Era uma tradição a montagem do presépio na praça central de uma pequena cidade italiana. Mesmo o frio não era impedimento para a senhora Extra Luiza ajudar com a arte natalina italianíssima.

A sua família era a responsável pela montagem do presépio há mais de um século, pois o amor e a seriedade com esta arte já existiam há várias gerações.

E mais uma vez o presépio estava montado. As imagens tinham o tamanho de pessoas reais e tornava-se indistinguível a realidade da ficção. A senhora Extra Luiza, com seu avental inseparável e com os olhos lacrimejados, falou baixinho:− Grazie, mio Dio.

Já era tarde da noite, a senhora e a família foram para casa. O descanso seria um merecido presente para o corpo, pois o espírito estava leve como as pombas da praça antiga da Itália.

Na manhã seguinte, a senhora, que morava na mesma casa próxima à praça desde quando se casou há várias décadas, foi verificar como havia ficado o presépio, embora fossem as mesmas peças há tantos anos, Extra Luiza sempre dizia que cada ano o presépio ficava diferente. Quando a senhora chegou à praça, já foi observando o presépio, ela olhava os detalhes, as posições das imagens, se José estava com o doce olhar sobre Maria, se a Virgem estava próxima de “nosso menino Jesus”, a senhora sempre se referia ao “nosso menino Jesus”. Ela acariciava o rosto de José e o da Virgem Maria com tanto amor. Extra Luiza até limpava a mão em seu avental para tocar o pequeno Jesus.

Sim, estava tudo bem.

A senhora voltou para casa, mais à tardezinha voltaria para estar com o carpinteiro, a Virgem e o nosso menino Jesus mais um pouquinho.

Esta rotina se manteve durante os sequentes dias e Extra Luiza e sua família sempre sorriam quando olhavam para o antigo presépio. As pessoas abraçavam com o olhar toda a arte milagrosa na praça; havia os olhares mais críticos artísticos, porém até mesmo os que não confessavam buscavam a verdadeira arte do amor admirando a família santa rodeada pelos puros e companheiros animaizinhos.

Os dias próximos do Natal ficaram muito frios e a visitação diminuiu na praça, no entanto a senhora e seus familiares também sentiam o frio, mas isso não os impedia de estarem com a santa família. E iam durante o dia e muitas vezes à noite. E a senhora se encantava com o amor entre o pai, a mãe e o Menino.

Na noite de 24 de dezembro, o frio era severo e a neve caía do céu como “bênçãos”, foi a constatação da senhora.

Extra Luiza se aproximou do presépio, somente ela estava por ali, até mesmo os mendigos da praça haviam se refugiado em algum lugar mais quente. E a senhora começou uma prece em agradecimento, porém começou a ouvir um chorinho leve de criança. Abriu os olhos e pensou que estava ouvindo demais, era somente ela por ali. Mais uma vez ouviu. E agora viu algo se mexer no bercinho de Jesus. Arregalou os olhos e aproximou-se; seus olhos, com muitas lágrimas, não podiam acreditar. Passou as mãos nos olhos tentando limpá-los da lágrima e viu o que ali estava.

− Dio mio!

Já dentro do presépio, Extra Luiza ficou bem perto do bebê que choramingava em sua pureza e fragilidade. Observou que a imagem de cerâmica do menino Jesus estava ao lado para dar lugar ao bebê supostamente abandonado. Ele fora coberto com a própria manta que envolvia o nosso menino Jesus no presépio.

A senhora, sem entender muito bem o que estava acontecendo, não perdeu tempo e pegou o bebê em seus braços para aquecê-lo. Beijou-o na testa e o enrolou bem naquela coberta. Deixou-o em cima de uma palha enquanto, com muito cuidado, colocava o menino Jesus do presépio em seu lugar acariciando o seu rostinho.

A neve caía como bênçãos do céu. Extra Luiza, com o menino, quando atravessava a praça em direção à sua casa, lembrou-se das palavras do Senhor Jesus: 

“Em verdade eu vos digo: tudo o que fizestes a um destes pequeninos é a mim que fizestes.”

E uma luz do alto iluminava a senhora com o bebê em seus braços.

(Cínthia Cortegoso)

Palavras faladas e palavras escritas

Flores azuis: 7 das mais bonitas para oferecer ou plantar no seu jardim |  VortexMag

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Era uma tarde de início de primavera. As flores já eram vistas entre o vento fresco, resquício do fim do inverno. Mas a vida de Nancy não era a mesma que há alguns meses.

Como na maioria dos fins de tarde, a jovem Nancy, moradora de uma calma cidadezinha no interior da Inglaterra, pegava um de seus tantos livros e sentava-se numa cadeira, presente de sua avó, na varanda lateral de sua casa. Embora fosse uma pequena cidade, havia uma boa quantidade de pessoas que lá moravam, pessoas amigas que se preocupavam umas com as outras. Porém Nancy preferia ficar mais só para poder ler e vivenciar as narrativas.

E nesta tarde também fizera como de costume e iniciaria a leitura de um novo livro. Parecia buscar alguma resposta. Sentou-se na cadeira, acomodou-se, ainda dois passarinhos vieram bem pertinho de seus pés e logo voaram. Nancy distraiu-se um pouco e sorriu, mas o livro estava em suas mãos e voltou-se a ele. Analisou a capa, abriu-o e observou as informações sobre a autora e leu o prefácio, este, aliás, escrito por alguém com profunda delicadeza e respeito pela autora e sua obra.

Após a leitura inicial, Nancy começou a ler a narrativa. A jovem soube do livro por meio de uma nota muito elogiosa do jornal local. Os olhos de Nancy começaram a ficar extremamente interessados por aquelas palavras, construções linguísticas e sintáticas – algo que muito lhe interessava – e o enredo começou a despertar-lhe certo encantamento e sede por mais e mais aprender.

O sol dava sinal de querer descansar e, assim, foi. A varanda estava um pouco cinza mesmo com a luz que a jovem acendera sem dar-se conta e logo voltou a sentar-se.

Sua mãe a chamou para entrar. O caldo de legumes seria servido com fatias de pão caseiro. O pai já havia tomado banho e esta era a hora do jantar não havia o que discutir muito menos atrasar. A jovem deixou a página marcada e logo após retornaria.

Os três sentaram-se à mesa. Todas as noites eram assim, o jantar era a ocasião para reunir a família, pois o pai almoçava na fábrica onde trabalhava. Uma ou outra vez acontecia certa descontração, porém, na maior parte do tempo, permanecia alguma discrição entre os três, mas isso não era indício de falta de amor, eles muito se amavam, cada um a seu modo.

Terminaram, embora não houvesse muita conversa, o ambiente era feliz e aconchegante. Nancy recolheu a louça e levou-a à pia enquanto seus pais ficavam um pouco mais à mesa. O pai sempre pegava na mão da mãe e a olhava nos olhos com ternura. Como a filha tinha o objetivo da leitura, enquanto ainda estavam sentados, Nancy lavou, enxugou e guardou a louça. A cozinha estava ajeitada novamente e os pais estavam lá. Sempre relembravam algum acontecimento da juventude.

Nancy foi à varanda, pegou o livro e dirigiu-se rapidamente a seu quarto. Estava muito interessada na narrativa. Acomodou-se na cama e logo retomou a leitura. O encantamento pela história só aumentava. A jovem conhecia muito pouco sobre outras vidas, mas o assunto despertava-lhe total curiosidade, mais ainda, parecia querer saber como começar a compreender o que há um tempo vinha lhe acontecendo.

Quando chegou a parte do encontro entre espíritos muito afins ou com algum propósito, porém, em  corpos diferentes, Nancy suspirou e seus olhos se encheram, olhou para o lado, e Marcus, mais uma vez, sorriu e disse-lhe:

− Compreenderás o teu nobre trabalho. Estarei com você.

(Cínthia Cortegoso)

Os desenhos de Apolline

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De Londrina-PR

Quando ouvia o sino da matriz, principalmente, às dezoito horas, quando saía da escola e já havia cumprido o compromisso escolar, seu batimento acelerava como um despertar no tempo atual talvez por algum fato do passado, mas o coração de oito anos de Apolline era ainda tão jovem.

E o sino batia quando ela passava em frente à igreja na volta para casa. De segunda à sexta era assim. Nos fins de semana, ou se estava brincando ou fazendo a tarefa, parava, fechava os olhinhos e ouvia o som. Isso acontecia desde que a menina era bem mais novinha. Os pais achavam graça, porém, era tão profundamente que Apolline sentia.

Começou, há pouco tempo, desenhar uma casa com arquitetura mais antiga; a menina desenhava muito bem. Depois vieram o jardim, o campo de flores em volta que se estendia a alguns quilômetros, os animais ‒ quando desenhou um pequeno cachorro branco, a menina sorriu ‒, até que começou a preencher o desenho com algumas pessoas. Após a casa, vieram vários quadros de desenhos. A sequência desenvolvia-se cada dia um pouquinho.

E o tempo passava. Até que num sábado de manhã, depois de ter ouvido o sino tocar às dez horas, Apolline veio até a cozinha onde os pais estavam e disse-lhes que gostaria de mostrar-lhes os desenhos, estavam terminados. Os pais sorriram e pediram-lhe que os trouxesse.

A menina, como um corisco, foi buscá-los em seu quarto. Pegou as várias folhas desenhadas, organizou-as apoiando-as na escrivaninha e, como um raio, voltou à cozinha. Os pais estavam sentados à mesa aguardando-a. A filha colocou as folhas sobre a mesa. Eles sempre lhe deram muita atenção e amor.

Como as folhas estavam sequenciadas, à medida que eles fossem passando-as uma história começava a ser criada. Desde o primeiro desenho, os pais se surpreenderam com o que viram. Os detalhes eram muito encantadores e, ainda nas primeiras folhas, os pais já haviam desmanchado o sorriso e uma surpresa bem definida estava no semblante do casal.

O que os surpreendeu era a própria época, há uns cem anos. Aquela arquitetura, detalhes, cores, eram os mesmos questionamentos que os dois faziam mentalmente. E a filha passava-os e explicava-os com a desenvoltura de quem sabia, de fato, o que estava fazendo. E a pequena apontava algumas partes e lhes trazia as explicações. Foi um total de quinze folhas desenhadas.

A surpresa no olhar dos dois era evidente, pois estavam com os olhos arregalados e quase não piscavam. E passaram todas as folhas até chegarem à última. No fim desta, ao lado direito, estavam duas letras, poderiam ser as iniciais de algum nome ou informação. E o pai não perdeu tempo e logo lhe perguntou qual era o significado. A filha não tinha argumentações prontas nem convincentes, apenas falou com sinceridade que quando terminou os desenhos apenas fez, com muita rapidez, as duas letras.

Após a resposta, o pai, simples, mas com gosto e certo entendimento por desenhos e arte, lembrou-se de que havia folheado, numa livraria, um dia desses, um livro de grandes arquitetos dos séculos XIX e XX e uma das obras arquitetônicas apresentadas era de uma famosa arquiteta que assinava o esboço e suas obras com as mesmas letras e caligrafia com que Apolline fizera.

Os três ficaram quietos ora olhando-se, ora olhando o desenho.

O sino tocou mais uma vez no horário do meio-dia.

Ainda nesse livro, estava escrito que a mesma arquiteta amava o som do sino e adorava seu cão branco, companheiro e tão querido.

(Cínthia Cortegoso)

Agustina e o tempo

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

Talvez se se permitisse para a própria felicidade, Agustina não teria vivido este enredo.

Desde menina, ouvia mais que falava e sempre conquistou grandes amigas; quem sabe estas nutriam, como lema de amizade, ter alguém para desabafar e compartilhar os pormenores do sofrimento íntimo. Pode ser que, sim; pode ser que, não. Entretanto Agustina era uma mestra em ouvir e aliviar o outro coração atribulado.

Tantas histórias guardara como segredo ao longo dos anos. Acontecimentos hilariantes, simples, bem comuns e alguns comprometedores geral e ramificadamente. O alívio era nítido no olhar de quem compartilhara sua dor; o olhar da ouvinte era sempre doce.

Tinha laço de fita no cabelo quando começou; hoje já tinha, grisalho, todo o cabelo. O chá e as bolachinhas caseiras eram sempre oferecidos.

Agustina, depois de muitos anos trabalhando em cargo administrativo, havia se aposentado, estava com mais tempo para ouvir.

Certa tarde ainda fresca e quase chegada a primavera, ela olhava pela janela da sala se certificando de que ninguém viria procurá-la.  Olhou-se no espelho e viu sua imagem a distância. Sentiu como se olhasse para uma estranha. Seus olhos se encheram de lágrima que logo escorreu pela face clara.

Agustina ficara imóvel um tempo irreal ou imensurável, talvez incomparável com a vida do plano terreno. Sinceramente não soube calcular o tempo em frente ao espelho; sua face não mais estava úmida.

Procurou a cadeira em frente à escrivaninha, precisava sentar-se e retornar ao seu eu. Ainda se viu pelo espelho em outro ângulo. Os olhos se encheram da lágrima da dor por sua anulação, porém, sem opção de reconstruir o passado. E se olhava a distância pelo espelho.

Um sono profundo a inebriou. Ela conseguiu passar da cadeira para a cama ligeiramente. Deitou-se de lado; uma das mãos descansou à altura do coração e a outra, embaixo do travesseiro. A respiração estava suave, mas muito definida para a dimensão dos sonhos. E Agustina foi. Caminhou com a leveza que promoveu às inúmeras almas que a procuraram, sentiu as flores amarelas entre os dedos e levitava tão naturalmente; o sopro suave visitava sua face, não sentia nem frio, nem calor, estava em paz e sorrindo.

De repente, viu-se de frente a uma também senhora, sentada. Havia uma cadeira vazia; a senhora fez sinal para que Agustina se sentasse. Ela se sentou.

E como as amigas e as pessoas que passaram por sua vida, era agora a sua vez de desabafar e aliviar o coração que tanto ouviu e afagou inúmeros outros.

Não precisou de explicação para o momento, Agustina compreendeu que deveria falar; a senhora a ouvia com calma e carinho.

Quantos acontecimentos, compartilhou, sorria, entristecia-se e voltava a sorrir, mas, pela primeira vez, concedeu a si momento de falar… de falar sobre as suas dores, felicidades, as suas decepções, os seus desejos que não se realizaram, pois Agustina, durante esse tempo, anulou suas próprias realizações e escondeu-se delas. Ela, pela primeira vez, sentiu-se inteira.

O passeio naquela dimensão chegara ao fim, ela precisava retornar para o mundo físico e aproveitar o tempo que ainda lhe restava na presente existência para valorizar-se e ser para si o que somente os outros, por enquanto, haviam sido para ela.

Por meio de um suspiro profundo, Agustina estava de volta à sua cama, à sua vida, com o diferencial de, possivelmente, ter compreendido que tudo se inicia pelo próprio eu.

(Cínthia Cortegoso)

O caminho até a pedra branca

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De Londrina-PR

Ren sempre passava, ao fim da tarde, pelo mesmo caminho entre as árvores, arbustos, flores, o lugar próximo de onde morava. Era no pé de uma montanha bastante conhecida no Japão, mas o povoado era acanhado. O menino saía de sua casa por volta das quatro e meia e até chegar ao local destinado gastava cerca de quinze minutos andando por parte da pequena floresta. Antes desse compromisso diário, Ren fazia uma higiene básica, lavava os braços, rosto com a água fresca tirada das fontes naturais, penteava o cabelo e se olhava para verificar se a roupa surrada estava limpinha. E o menino seguia.

Nesta tarde alguns chuviscos caíram, mas a claridade de alguns raios de sol ao fundo do horizonte prevaleceu. A passagem da primavera para o verão favorecia esse momento. Ele conhecia muito bem por onde passava e por isso ia pela trilha mais segura.

Durante o caminho, seguia com seus pensamentos, parecia uma meditação. O menino ia ao encontro de algo realmente importante, compromisso com o coração. E percebia as flores que acabavam de se abrir, algum galho caído que no dia anterior não estava, novas plantinhas crescendo, a posição que os raios de sol desciam, para qual direção o vento agradável soprava. Ren apreciava tudo o que merece apreciação, aprendera com sua mãe.

E o caminho, mais uma vez, havia sido percorrido. Uma clareira se fazia vista. Ele chegou, parou, passou a mão no rosto e tirou o suor em forma de gotinhas, secou a mão na lateral da camiseta limpinha e surrada. Deu um sorriso calmo e feliz. Com tranquilidade, aproximou-se de uma pedra bem clara, passou suavemente a mão e sentou-se ao lado.

‒ Hoje é o seu aniversário ‒ disse o menino.

Ele sorriu e uniu as mãos ao peito. Falava palavras bem baixinho com os olhos fechados e terminou com a prece como todos os dias. Ren sentia-se em paz e feliz com aquela tão maravilhosa companhia. Abaixou a cabeça em sentido respeitoso e despediu-se. O sol começava a querer descansar devagar.

Quando o menino se virou para voltar, percebeu que seu pai o observava – como sempre chegava um pouquinho mais tarde por causa do trabalho. E o pai sorriu.

‒ Vamos, filho!

Ren sorriu.

Os dois começaram o caminho de volta para casa.

Naquele dia, completaram-se dois anos do ocorrido com a mãe do pequeno Ren. E não houve como evitar. O mesmo dia do nascimento também fora o da sua partida. Mas o menino preferia lembrar o dia do aniversário de sua mãe e não o da despedida, porém as visitas diárias celebravam o encontro, por um tempo, entre mãe e filho. E ele a visitava desde o dia após o enterro do corpo de sua mãe ao lado da pedra clara em formato de coração.

‒ Papai, mamãe estava mais feliz hoje.

‒ Sim, Ren. Mamãe está a cada dia se recuperando… e quando ficar bem, flores brancas nascerão ao lado da pedra clara e ela correrá para o jardim das lindas flores.

O filho sorriu mais uma vez. De longe, o pai não percebera, mas o menino vira pequeninas flores brancas brotando ao lado da placa no chão com as seguintes palavras:

“Aqui está o corpo de minha mãe, mas ela inteira está no meu coração.”

Pai e filho chegaram a casa, e mesmo com alguns pingos de chuva à tarde, as estrelas já iniciavam o lindo brilho no eterno céu.

(Cínthia Cortegoso)

Uma joaninha com asas de borboleta

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

Se alguém começasse a ouvir o sonho de uma joaninha de um dos muitos campos de flores de uma cidade bem do interior de um país da América do sul, ou daria uma sincera gargalhada ou nem esperaria a história terminar ou, quem sabe, ouviria sem muito considerá-la. Mas como se fala, sonho não tem medida e o que puder ser sonhado já é um sonho, embora entre sonhar e realizar exista uma distância às vezes.

E aquela tarde estava completamente linda naquele campo de flores e cores. Tudo estava com mais brilho. Os seres voadores enchiam de movimento colorido sobre as tulipas, margaridas, rosas e outras tantas senhoritas da natureza. E se exibiam com graça aproveitando o bem-estar da energia pura, calmante, refazedora.

Porém, num galho de uma árvore antiga à lateral do campo, estava uma joaninha vermelha com pintinhas pretas. Estava sozinha, não tinha nenhuma amiga joaninha, ou melhor, não tinha nenhum amigo. Ela ficava quietinha observando, às vezes, chorava baixinho, mas como não tinha amigos, não havia nenhuma criatura com quem pudesse conversar, desabafar.

E mesmo naquela magnífica e reluzente tarde, a joaninha não conseguiu perceber nem um pouquinho toda a alegria no campo. E os seus olhinhos se encheram ainda mais de lágrimas quando ela viu bem de perto o gracioso voo de uma borboleta grande, colorida, livre. A borboleta voou para o campo. E a joaninha chorou tanto que, sem força, dormiu no galho da árvore.

Durante esse soninho, ela sonhou que era o que sempre desejou ser: uma linda borboleta colorida. Voava por todos os lados, via tudo o que queria lá de cima, sorria e era feliz, mas se machucou ao tentar entrar entre as flores e querer observar os detalhes de cada uma. Não era possível, pois era uma borboleta grande e seus ares deveriam ser maiores para as suas asas. Uma folha apenas não era suficiente para protegê-la do sol forte ou da chuva gelada. Não conseguia caminhar pela suavidade das flores nem sentir toda a sua delicadeza. Também não tinha o brilho refletido tão lindamente em suas asas… de borboleta como nas asas de joaninha.

Ainda no sonho, outra joaninha passou por perto da borboleta e simplesmente falou:

‒ Sou muito feliz… sou uma joaninha cheia de oportunidades… sou quem agora devo ser…

E a borboleta no sonho ficou muito pensativa até que despertou joaninha. Continuava uma tarde linda. Ela abriu bem os olhinhos e começou a ver tudo muito diferente.

Em seu coraçãozinho, uma alegria nunca sentida chegou de mansinho e se fortaleceu. Também sentiu uma gratidão por estar viva e ser ela mesma. Compreendeu que cada um é o que deve ser e todos possuem as suas qualidades.

Viu uma linda e grande borboleta passar à sua frente, mas se sentiu muito feliz em ser a joaninha pequenina e vermelha com pintinhas pretas naquele lindo campo que agora tanto queria conhecer.

(Cínthia Cortegoso)

Um gatinho branco e outros olhos brilhantes

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cinthiacortegoso@gmail.com

De Londrina-PR

Naquele domingo de manhã, o sol estava muito radiante e o céu, azul… bem azul ‒ no sábado à noite, uma chuva mansa e demorada caiu para limpar e refrescar. No domingo soprava um ar fresco; era início de primavera.

Thomas estava na varanda perto da cozinha brincando com um jogo de que os meninos de sua idade gostavam. Diziam que era um jogo de muita paciência e observação para encontrarem as parecidas peças e desenvolverem a sequência de uma ação, um exemplo de uma seria um menino pegando a bicicleta e saindo para passear. E Thomas se concentrava. No entanto, naquele momento, não o suficiente, pois percebeu um gatinho branco passando rápido por ali, mas sem detalhes. O menino interessava-se muito pelo jogo para deixá-lo e procurar um suposto gato que até poderia ser apenas de sua imaginação.

A sequência de montagem do jogo estava muito interessante e num estágio que Thomas ainda não havia chegado. E mesmo muito concentrado, percebeu mais uma vez o gatinho, porém, agora o pequeno não passou rápido, veio aproximando-se, com algum receio, e o menino perdeu de vez a atenção pelo jogo e passou a olhar inteiramente para aquele gatinho branco que também olhava para o menino querendo dizer algo, talvez um pedido de ajuda.

O menino olhava para o animalzinho que tinha os olhos com tanto brilho. Ainda, com certa ponderação, o gatinho deu um passinho para trás. Mas Thomas falou com ternura:

‒ Não tenha medo, gatinho. Só quero conhecê-lo mais.

O bichano virou um pouco a cabeça querendo compreender, ou melhor, já compreendendo pelo tom carinhoso.

E Thomas, devagar, foi conversando e aproximando-se do gatinho branco que deixou o menino aproximar-se. E Thomas ficou bem perto e poderia fazer um carinho no frágil animalzinho que se sentando permitiu que o menino o acariciasse.

Menino e animalzinho em paz e respeitando-se. Thomas acariciava com leveza a cabeça daquele gatinho branco e este aceitava com gratidão o gesto. Porém, o olhar do gatinho dizia mais. Recebeu, mais alguns segundos, o carinho em sua cabeça, mas, de repente, pôs-se em pé e, como se chamasse Thomas para segui-lo, recuava miando. O menino simplesmente o seguiu.

Andaram uns minutos; o menino acompanhava o animalzinho. Thomas morava num vilarejo e toda a redondeza era mais rural que urbana. E passaram por um sítio e quando começaram a cruzar outro, o gatinho deu uma corridinha para chegar logo, como se chegasse ao local desejado. Isso mesmo. O gatinho branco esperou até que o menino chegasse. Parecia uma pequenina gruta.

Thomas abaixou-se um pouco para ver melhor o que estava dentro e quando olhou bem viu um gato querendo esconder-se, parecia também um gato branco, maior que o gatinho. O pequenino observou o olhar do menino que não se espantou muito, porém, em segundos esse olhar mudou completamente.

Outros olhinhos começaram a brilhar saindo de trás do gato. Eram olhinhos diferentes e não eram gatinhos brancos. Saíram e ficaram à frente do gato que os protegia. Thomas não acreditava. Aqueles olhos não eram de gatinhos. Eram cinco pares de olhinhos de esquilos.

‒ Nossa! Não são gatos!

O gatinho branco observava o menino. O gato maior deveria ser a mamãe do gatinho, Thomas compreendeu. E aqueles olhinhos brilhosos vieram para frente para saber quem os observava. Curiosidade nata.

Então, era possível entender que a mamãe do gatinho branco estava cuidando dos cinco pequenos esquilos que certamente estavam órfãos. No entanto, todos, os esquilos e os gatos precisavam de ajuda. E Thomas, que era um menino e mais capaz que os pequeninos, sentiu a responsabilidade e o carinho em ajudá-los.

Depois de uma semana, também no domingo de manhã, Thomas estava brincando novamente com seu jogo, porém, na companhia de uma corajosa gata mamãe, um adorável gatinho branco e cinco alegres esquilos muito belos e brincalhões.

(Cínthia Cortegoso)